Ininterrupta exclusão: Placa indicativa da implantação do suposto Boulevard, entre as Ruas Rio de Janeiro e 21 de Abril.
Fonte: Foto do Autor
Bem, como muitos de
vocês já sabem estou escrevendo, na verdade já está quase concluído, em
processo de revisão, um livro sobre os rios urbanos de Belo Horizonte,
pertencentes à bacia do ribeirão Arrudas, principal drenagem da zona planejada
e de uma porção considerável do município e da Cidade Industrial. Venho me
deparando e me surpreendendo a cada pesquisa, a cada entrevista, a cada imagem
descoberta de como eram os nossos rios, o convívio da sociedade com eles e como
que se deu o processo de degradação e ocultação deles, excluindo-os de nosso
cotidiano, tudo muito bem pensado e executado. Gostaria de fazer uma breve
reflexão sobre o Arrudas e o suposto e vergonhoso Boulevard que se edifica
sobre ele.
Receptor
dos esgotos de grande parte da capital desde a sua inauguração no ano de 1897,
o modesto ribeirão sofreria inúmeras intervenções ao longo do século XX visando
à inserção – racionalização do seu curso à rígida malha urbana da urbe mineira,
onde o poder público ganhava a cada retificação e canalização empreendida uma considerável
porção de terras, repassadas para os especuladores que parasitam a região do
antigo arraial desde antes da instalação da Comissão Construtora no ano de
1894.
Nesse contexto todos
saiam ganhando, o poder público, os agentes imobiliários, os empreiteiros
responsáveis pela execução das obras e os fornecedores de material, logística
etc. Ao mesmo tempo em que os elementos naturais e os ecossistemas, sinônimo de
atraso para a emergente sociedade urbana mineira perdiam para sempre o que é
seu por direito, usurpado pelo racionalismo republicano de uma sociedade
fortemente enraizada, até hoje, no campo, mas que nega o meio do qual faz
parte.
O modesto ribeirão confinado em seu canal artificial no ano de 1929. E os esgotos à vista.
Fonte: APM
Supostamente controlado
e inserido na malha urbana de acordo com a cartilha positivista, o ribeirão passava
cada vez mais rápido ao longo da cidade impermeável, onde o pavimento
betuminoso avançava sobre os vales da mesma forma em que as águas pluviais enchiam
as vias e os quintais, que sob um utópico controle humano tomavam o que é seu por
direito nos períodos chuvosos, apesar das garantias do poder público de que os
transbordamentos eram coisa do passado (ou do presente?) a partir do momento em
que as águas eram canalizadas. Ainda assim, apesar do modelo único de controle
dos rios ter se mostrado um fracasso logo no primeiro ano após a conclusão dos
canais artificiais, por motivos óbvios, uma parcela dos engenheiros ainda defende
a canalização como a única solução para as águas urbanas e evidentemente, as
administrações posteriores continuariam a “vender” os canais para uma cidade
que celebrava cada obra concluída e que vislumbrava a solução dos seus
problemas sanitários com as famigeradas “Avenidas Sanitárias”, abertas ao longo
das várzeas dos rios urbanos encerrados nos canais. Deve-se compreender que os
problemas sanitários nunca foram resolvidos, mas sim agravados e a relação da cidade
com os rios urbanos se deterioraram, pondo as águas urbanas à margem da
sociedade, tornando-as indesejadas por uma geração que nasceu sob as mazelas da
poluição e das enchentes.
O processo de
metropolização, desencadeado a partir de 1950 consolidou não só os arranha céus
na paisagem urbana, mas também o asfalto e o automóvel, agora protagonista das
politicas urbanas de Belo Horizonte, elementos que já figuravam como sinônimos
de progresso desde a gestão JK que, contaminado pelo vírus vanguardista,
impregnado de um populismo que visava atender apenas as demandas das elites,
promovia a modernização da urbe com claras intenções futuras, que acabou por
projetá-lo no cenário nacional como o político ideal para colocar o Brasil no
caminho da modernidade. Suas ações em âmbito estadual e posteriormente federal
foram bem absorvidas pelos administradores municipais, que trataram de espalhar
pela cidade o tapete betuminoso, para que a população pudesse deslizar pelo
suave asfalto do progresso, dentro dos confortáveis auto-ônibus e automóveis
individuais, símbolo da nossa sociedade contemporânea.
A culpa é do rio! Retificação do Rio Tietê no ano de 1958. A faraônica obra, cogitada desde o século XIX foi levada a cabo à partir da gestão de Prestes Maia, onde o rio era visto como o responsável pelas cheias. O resultado da ocupação das várzeas, do confinamento do rio em um canal artificial e a perda ecossistêmica serviu para o agravamento das enchentes e para a morte do rio, contribuindo decisivamente para o seu afastamento da população. O modelo acima foi e ainda é amplamente adotado em Belo Horizonte.
Fonte: Geoportal
As áreas perdidas para a cidade e o canal artificial do Tietê, nas imagens dos anos de 1958 e 2014.
O suposto controle das águas proporciona um extraordinário ganho de terras para a posterior exploração e especulação imobiliária.
Fonte: Geoportal
Porção final do canal artificial do Arrudas na zona planejada no ano de 1953, na ponte do Perrela. À jusante da ponte é possível visualizar a foz do córrego da Serra e a descarga do grande emissário da margem direita do ribeirão, além das favelas do Perrela e Baiana em formação, assim como a Ilha do Urubu.
Fonte: Panorama de Belo Horizonte
Nesse contexto, onde o
lobby do asfalto, do concreto e do automóvel passara a ditar as regras do jogo,
apadrinhado por um poder público submisso e contaminado pelos interesses de uma
classe que se preocupa apenas com a ascensão politica não havia mais espaço
para os elementos naturais nas emergentes aglomerações urbanas. A longa reforma
urbana das décadas de 1960 e 1970, incentivada pela ditadura que ansiava um
Brasil moderno sob os moldes industriais, mas sem um planejamento coerente,
promoveria na emergente metrópole mineira a supressão continua da arborização
urbana e das matas que circundavam a urbe, assim como o encurtamento e extinção
dos canteiros e calçadas, que obrigatoriamente cediam o seu quadrado para o
asfalto, que ocupava também os cursos dos rios urbanos, correndo agora sob o
asfalto do progresso materializado nas avenidas sanitárias.
Depois de muitas
coberturas, arrasamentos, canalizações e enchentes, no ano de 2002 Belo
Horizonte se destacaria no cenário internacional ao criar o programa DRENURBS,
que propunha a conservação dos rios urbanos no seu leito natural, inserindo-os
novamente na paisagem da cidade, como um elemento concreto que a compõe.
Ironicamente, ao mesmo tempo em que o programa era implantado, em um claro
retrocesso e em contradição com algumas observações materializadas na Política
Municipal de Saneamento, iniciaram-se as obras de cobertura do ribeirão Arrudas
na área central da capital (Boulevard Arrudas), dentro do projeto Linha Verde,
com participação dos governos estadual e municipal que, apesar da suposta
“bipolaridade” pregada atualmente, uniram forças na tarefa de desencadear uma
nova velha reforma urbana na urbe mineira, onde mais uma vez os elementos
naturais eram atacados, sob o olhar cético da população que morre de medo de
morrer de sede mas não compreende que existe uma imensa caixa d’água sob nossos
pés e que mais uma vez aplaude o poder público, sob a justificativa da utópica
melhoria viária e do embelezamento e modernização da cidade, sem dúvida um
provincianismo de uma considerável parcela da população que votou a favor da
cobertura do rio e que certamente considera a ponte metálica sobre a linha
férrea (Viaduto Itamar Franco) a grande obra que inseriu Belo Horizonte no hall
das modernas metrópoles do século XXI, fato no mínimo hilário.
Antagonismos à parte, a
vitoriosa conquista do território fluvial pela cidade continuaria
ininterruptamente nos anos seguintes. Entre 2010 e 2013 o magnífico “Boulevard”
foi estendido à montante da foz do córrego do Leitão até o bairro Padre Eustáquio,
cuja obra, ou aberração, mais marcante na paisagem foi à construção do imprescindível
Viaduto Itamar Franco, uma inútil e bizarra ponte que serve apenas para atestar
a incapacidade do poder público para lidar com os problemas urbanos e que ainda
acredita que os viadutos, apesar de caírem sob nossas cabeças, continuam sendo
a solução para o caos viário, contribuindo para a afamada riqueza dos
empreiteiros, sedentos por obras faraônicas desde sempre. E claro, não se
esquecendo da retificação e canalização do ribeirão nas proximidades do
Barreiro, à custa da supressão do ultimo trecho do ribeirão em leito natural e
das matas ciliares, uma perda irreparável para a cidade e para o moribundo
ecossistema do ribeirão.
E quando achávamos que
os nossos competentes administradores, preocupados em consolidar o modelo de
cidade-empresa em nossa roça metropolitana, onde as orgias capitalistas nunca
se cessam, em detrimento à grande massa populacional da urbe mineira, recebemos
a noticia da continuação da expansão da cobertura do ribeirão Arrudas, dessa
vez entre a Rodoviária e a Rua Rio de Janeiro, sem dúvida imprescindível para a
higiene, para o embelezamento da cidade e para os automóveis, atestando mais
uma vez a incompetência do poder público que continua a insistir em um modelo
que já se mostrou ineficaz e responsável pelo agravamento de todas as mazelas ocorridas
nos períodos chuvosos, além da suposta solução dos congestionamentos na região
central.
Já se vai mais de 50 anos desde
o inicio da franca cobertura dos rios urbanos e infelizmente nada mudou por
aqui, apesar do modelo desenvolvimentista adotado já tenha se mostrado um
fracasso. O ribeirão Arrudas, sacrificado pela negligência e pela conveniência
da sociedade e do poder público, responsável pela sua marginalização perante a
cidade, assim como as demais águas urbanas, vem sofrendo nesses últimos 40 anos
inúmeras intervenções, desde o aprofundamento e alargamento do canal, reflexo
da incompetência administrativa municipal e estadual no que diz respeito à
gestão das águas urbanas, até a cobertura de diversos trechos do seu curso e
extinção das ultimas várzeas existentes, para o alargamento das vias para
atender o fluxo viário. Definitivamente precisamos de vias para os outros modais
de transporte e não para carros apenas. E não existe ganho ambiental nesse
caso, como afirmara a BH Trans no momento da expansão do Boulevard através do
plantio de árvores, impostas pelo poder público desde os primeiros anos da
capital e apesar de entendidas como um patrimônio coletivo são derrubadas
arbitrariamente no momento em que elas se tornam um entrave para os automóveis.
Mas e as águas? Quando elas terão vez?
Perpetuação do nefasto modelo: cobertura do córrego do Acaba Mundo no ano de 1965. É incrível que o método adotado há mais de cinquenta anos pelas administrações municipais ainda figure por aqui como a solução única para as águas urbanas, apesar do DRENURBS.
Fonte: APCBH/ASCOM
Alguma semelhança com a imagem acima? Ribeirão Arrudas na Avenida Tereza Cristina.
Fonte: Foto do Autor
A cobertura do Arrudas
e dos demais córregos que correm sob os nossos pés tem apenas um vencedor: os
empreiteiros e agregados políticos que pleiteiam e prometem a solução dos
problemas a partir da execução de obras faraônicas e mal feitas, se perpetuando
no poder preocupados apenas com a sua carreira política e vantagens mais. Infelizmente
isso não se resume a Belo Horizonte. E definitivamente não precisamos de mais
um “Boulevard”, mas sim de Parques Lineares e espaços comuns. Pensar um novo modelo de cidade é preciso, devolver as várzeas
e reinserir as águas urbanas da paisagem é preciso, sair da cômoda alienação na
qual nos encontramos é preciso. Exemplos e capacidade para isso temos de sobra. E a cidade
agradece, os ecossistemas agradecem e as gerações futuras agradecem.
Córrego do Acaba Mundo no aglomerado de mesmo nome, próximo às suas nascentes.
Estão certas as nossas escolhas? A imagem diz por si só.
Foto: Fonte do Autor