Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem no ano de 1894.
Fonte: MHAB Acervo CCNC

    Como a maioria das cidades mineiras surgidas nos primórdios da ocupação do território mineiro, o arraial do Curral del Rey surgiu seguindo o traçado dos primeiros caminhos abertos a partir da insaciável busca pelo ouro entranhado nas serras desse belo torrão de terra brasileiro. Fundado nos limites do Quadrilátero Ferrífero e dos planaltos guardiões do vasto sertão das Gerais, de onde provinha o gado e os sertanejos vindos da porção nordeste da colônia, o arraial figurava como um importante entreposto entre a região produtora de víveres e a região consumidora dos produtos, ou seja, as minas de ouro distante poucas léguas do arraial, que mantinha ligação com as regiões auríferas através das estradas ou picadas, abertas a partir da ocupação do território.
      Existem duas versões que explicam o surgimento do arraial, estritamente conectadas e ao mesmo tempo distantes. De acordo com os historiadores Augusto de Lima Junior e Waldemar de Almeida Barbosa, no ano de 1706 o capitão da Nau Nossa Senhora da Boa Viagem, Francisco Homem del-Rei abandonou a sua embarcação no Rio de Janeiro e rumou para a região das minas em busca de riquezas e prosperidade, juntamente com o comandante Luiz de Figueiredo Monterroyo, edificando a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem de Itaubira.
      Após estadia em Itabirito, no ano de 1716 o capitão, nas sesmarias de Borba Gato, fez um requerimento para que o vigário da Vila de Sabará, núcleo urbano mais próximo do arraial, pudesse celebrar missa em uma capela de pao que erguera nas proximidades de sua moradia. Quando veio a autorização para celebrar missa, já existiam no entorno da capela inúmeras casas de mineiros e de agricultores, estava formado o arraial de acordo com o ilustre historiador.
      A segunda versão, na verdade a oficial, vem de Abílio Barreto[1], que conecta o arraial à sesmaria concedia ao bandeirante paulista João Leite da Silva Ortiz no ano de 1701, que ali se estabeleceu fundando a Fazenda do Cercado, nas terras atualmente ocupadas pelo bairro Calafate às margens das estradas do Bom Sucesso e do Cercadinho, em grande parte desaparecidas ou absorvidas pelo tecido urbano da capital mineira. A sesmaria de Silva Ortiz era bem extensa, abrangendo não só a porção das terras que abrigaria o arraial, poucos anos após a concessão, mas também as terras limítrofes à Serra das Congonhas[2], a Lagoa Seca e ainda a porção adjacente a Serra da Onça, ou Serra do Retiro Velho, divisor de águas do então ribeirão Grande[3] e ribeirão da Onça, na porção correspondente ao bairro da Lagoinha, e como destaca Barreto, um antigo topônimo ainda conservado em forma de bairro e boemia, assim batizado graças a uma pequena lagoa que ainda existia nos tempos da Comissão Construtora da Nova Capital.
      As duas versões se encontram estritamente conectadas, visto que o arraial nasceu nas terras da grande sesmaria de Borba Gato, senhor das terras da recém fundada Sabará. Silva Ortiz, que na verdade se estabeleceu na região da paragem do Cercado no ano de 1701, certamente foi atraído pela abundancia das águas que vertem do complexo da Serra do Curral e pelo tão sonhado ouro que descia morro abaixo, realizando o requerimento de sesmaria anos mais tarde, recebendo a carta de concessão no dia 19 de janeiro de 1711. A data precisa do surgimento do arraial é desconhecida, sendo que a notícia mais antiga da sua existência data do mês de janeiro de 1711, a partir de uma sesmaria concedida a José Ribeiro, que afirmara que já possuía há quatro anos um sitio defronte do Curral d’El Rey da outra banda do Ribeyrão que vem do Sitio chamado Sercado[4]. Barreto ainda observa que “logo depois de fundada a fazenda do Cercado, foi surgindo o povoado, ao qual os habitantes deram o nome de Curral del Rei, por causa do cercado ou curral ali existente (...)”.     
      Conectando as versões de Augusto de Lima Junior e Waldemar Barbosa, que não fala dos primeiros anos do século XVIII e a versão de Abílio Barreto, chega-se à seguinte conclusão: João Leite da Silva Ortiz chegou às terras que receberiam pouco tempo mais tarde o arraial do Curral del Rey no ano de 1701, na leva dos descobridores paulistas que para cá se dirigiram após a fome que assolou o solo mineiro nos derradeiros anos do século XVII, adquirindo uma concessão de terras longe de onde se estabeleceu o arraial.
      O arraial, fundado nas prósperas terras de Borba Gato, pioneiro Bandeirante, por Francisco Homem del-Rei que possuía uma fazenda dentro da grande Sesmaria de Borba Gato, surgiu ao longo do caminho para Sabará e Caeté, importantes centros mineradores e no caminho para as minas de Vila Rica e arredores, assíduos consumidores de produtos agrícolas e pecuários vindos do sertão e mesmo do vale do Paraopeba, região que se conectou diretamente com as minas apenas nos anos 1730 a partir da abertura de uma estrada via Serra da Calçada e da Moeda. Ou seja, o arraial estrategicamente se estabeleceu no entrocamento das estradas de Sabará e da Vila Rica.
      Para se ter ideia o arraial recebeu no ano de 1719 trinta dragões, aquartelados por ordem de D. Pedro de Almeida, futuro Conde de Assumar e no ano anterior um provedor dos quintos reais, indícios da importância do arraial para o erário real. E possivelmente recebeu a denominação Curral del Rey pela sua importância para o transporte do gado, ou mesmo um entreposto entre a região das minas e dos currais, local escolhido por Francisco Homem del-Rei para construir um notável curral e ainda se estabelecer possivelmente como comerciante, agricultor, negociante ou faisqueiro ainda no ano de 1709[5], dois anos antes do Curral del Rey existir oficialmente para a metrópole. Sendo assim, ao que tudo indica, e como observado por Borsagli (2017, p.30) a participação de Silva Ortiz na fundação do arraial é nula.
      Estabelecido o arraial vieram os louros da breve glória do século do ouro, ao mesmo tempo em que as terras da sesmaria original eram, ao que tudo indica, gradativamente parceladas, formando as primitivas fazendas que se tem notícia a partir da Lei de Terras do século seguinte. No ano de 1752, foi erigida uma vigaria junto a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, abrangendo ainda as filiais de Contagem, Betim e Neves
   A Capela primitiva, erguida nos primeiros tempos da colonização já não comportava mais a população do arraial, devido a suas pequenas dimensões. Ela foi então substituída por uma edificação maior, com a mesma invocação de Nossa Senhora da Boa Viagem. A sua construção durou cerca de cinco anos, entre os anos de 1788 e 1792.
    O Curral Del Rey não foi muito prejudicado com a decadência das minas no final do século XIX como outros arraiais do mesmo período. Isso se deve a quase nula exploração de ouro nas suas redondezas, existindo apenas alguns registros de explorações na Serra do Mutuca e na região do Taquaril, esta citada por Richard Burton em 1865. Porém o arraial passou por um processo de estagnação durante o século XIX, estagnação verificada também em outras partes do Estado.
    É importante lembrar que a vida nos núcleos populacionais de Minas Gerais durante o século XVIII e grande parte do século XIX se dava nos finais de semana e dias de festa, pois durante a semana os habitantes encontravam-se ocupados nas roças e criações de gado, além da mineração na região das minas. Conseqüentemente as habitações permaneciam fechadas na maioria nos arraiais.
     Ao longo do século XIX o Curral del Rey se consolidou na produção de gêneros alimentícios, de farinha e de aguardente de cana, vendidas no próprio arraial nos finais de semana e nas vilas e cidades próximas, em particular a afortunada Congonhas de Sabará, com quem mantinha um animado comércio dada a presença dos ingleses da aurífera St. John del Rey no povoado, além de alguns curtumes, estabelecidos na porção sul do arraial. Dessa forma, torna-se necessário observar o cotidiano dos curralenses tão bem descritos por Francisco Martins Dias, em conformidade com o observado por Saint Hilaire ao longo das viagens por Minas Gerais e por outros viajantes.
     Na segunda metade do século XIX o Curral del Rey, apesar dos desmembramentos territoriais e do apontamento de uma decadência da Freguesia, era considerado um dos maiores produtores de algodão da Província, abrigando inclusive no distrito de Venda Nova uma pequena tecelagem e no ano de 1878 a fábrica de tecidos de Marzagão, às margens do ribeirão Arrudas, além da produção de víveres vendidos para fora da Freguesia.
     Indiscutivelmente, na proporção da época, o Curral del Rey, em meio a suas belas águas e belas serras, vislumbrava um futuro de gloria e abastança, glorias e esperanças que vieram com a proclamação da República no ano de 1889 e em consequência a mudança de nome, passando a se chamar "Bello Horisonte" a partir do ano de 1890.


Perspectiva do arraial de Belo Horizonte, antigo Curral del Rey no ano de 1894.
Fonte: Acervo do Autor    


*Publicação de abril de 2010 atualizada em março de 2019. (REFERÊNCIA: BORSAGLI, Alessandro. Sob a sombra do Curral del Rey: contribuições para a história de Belo Horizonte, v.1. Clube de Autores, 2016, p.25-80).

[1] Memória Histórica e Descritiva v.1 p.91.
[2] Serra do Curral.
[3] Ribeirão Arrudas.
[4] Revista do Arquivo Público Mineiro v.10 p.902.
[5] Não se descarta relação com a Guerra dos Emboabas o estabelecimento de Homem del Rei nas sesmarias de Borba Gato, visando o abastecimento de viveres à região das Minas.

10 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente trabalho

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  2. Caro Alessandro, ao reler seus primeiros textos postados, especialmente este sobre a origem do extinto arraial do Curral Del Rey, chamou-me a atenção um detalhe sutil, que passou despercebido antes mas que muito me intrigou: é sabido que a origem primeira do arraial foi a Fazenda do Cercado, fundada pelo bandeirante Silva Ortiz no início do século XVIII; porém, você diz de passagem (e eu já li isso em outras fontes) que tal fazenda se localizava na atual zona oeste da cidade (onde hoje seria o Calafate ou mesmo o Salgado Filho); assim sendo, como o núcleo central do Curral Del Rey foi desenvolver-se bem distante dali, ou seja, na região que hoje seria parte do centro e do bairro Funcionários ? Pela lógica, creio que o arraial, incluindo sua igreja matriz e o principal de seu casario, deveria ter crescido nas proximidades da sede da referida Fazenda do Cercado (atual região oeste da cidade) e não há quilômetros dali, como se deu, ainda mais considerando-se as dificuldades de transporte naquela época. Existe alguma explicação histórico-geográfica para tal "discrepância" ? O historiadoAr Abílio Barreto, em sua obra, chega a abordar tal assunto ? Além disto, existe alguma explicação do por quê o arraial do Curral Del Rey ter crescido justamente ali naquele sítio específico, que hoje corresponderia, como disse, aproximadamente a parte do centro e do bairro Funcionários ? No mais, meus parabéns pela excelente qualidade dos "posts", dos quais tenho me tornado leitor assíduo nos últimos tempos.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Muito interessante! Morador da região Oeste, deparo-me até hoje com a 'Estrada do Cercadinho', que atravessa um aglomerado. Dentro da pergunta (e resposta) anterior:
      1) O que é e onde ficava o Cercadinho? Era uma parcela da fazenda do Cercado?
      2) A Estrada do Cercadinho era uma ligação entre o Arraial e o Barreiro?
      3) Da fazenda do Cercado: Nada se preservou até hoje? Não existiria talvez alguma outra 'Fazendinha' perdida por BH?
      abs e parabéns outra vez

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    3. Olá Thiago, desculpe a demora para responder, vou publicar sobre o Cercado nas próximas semanas ok? Obrigado e abraços!

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  3. Gostei muito tinha uma pesquisa pra fazer ficou ótimo.

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  4. Gostei muito, mas não foi possível selecionar, assim tornando mais dificil a reprodução ( com a fonte sendo citada) .

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  5. Olá, é só me mandar um email que te mando a parte selecionada se quiser. O blog foi alvo de diversos plágios, principalmente essa parte do arraial (1701-1897), por isso não tem como seleciona-lo. O email é o borsagli@gmail.com

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  6. Belo trabalho de melhoramento na foto da Matriz da Nossa Senhora da Boa Viagem. Me vi dentro do contexto quase que em uma máquina do tempo. Parabéns.

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