Parte da Planta Geodésica de Belo Horizonte do ano de 1895, onde se extraiu o trecho correspondente ao vale do córrego do Leitão, localizado na região centro sul de Belo Horizonte. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC

* Artigo publicado originalmente em outubro de 2012 e republicado em janeiro de 2014. Visto a descoberta de erros nos documentos oficiais referentes a região, nos quais o artigo se baseia, ele foi retirado do ar no ano de 2017, e a partir de indagações e apontamentos absurdos recebidos pelo Autor, ocorridos em março de 2019, ainda que apresentando erros, o artigo voltou ao ar. Ressalto que no mês de junho de 2019 será disponibilizada uma publicação que corrigirá os erros contidos no presente artigo, ressaltando que o mesmo não sofrerá modificações, e caso sofra, será ASSINALADA.



        Em Outubro de 1992 era tombado a nível municipal um dos únicos exemplares construídos no Século XIX ainda existentes na capital mineira, o casarão presente no Aglomerado Santa Lúcia. A “Casa da Fazendinha” ou simplesmente “Fazendinha” é um casarão existente no Aglomerado Santa Lúcia ou Morro do Papagaio, às margens da Barragem Santa Lúcia. Segundo consta no Guia de Bens Tombados de Belo Horizonte ele foi construído em 1894 para uso residencial, talvez para algum familiar ou mesmo para a família de Ilídio Ferreira da Luz, proprietário da Fazenda Capão, cujas terras abrangiam as cabeceiras do córrego do Leitão e o local onde se construiu o casarão. Atualmente o estilo predominante no casarão é o eclético com influencia neoclássica, uma característica das primeiras construções da nova capital, nesse caso aplicada em um imóvel rural. 
      Segundo a Planta Geodésica do arraial de Belo Horizonte, confeccionada em 1895 pela Comissão construtora da Nova Capital as terras da Fazenda Capão passariam a integrar parte das zonas urbana e suburbana da nova capital, assim como as terras da Fazenda do Leitão, localizada na margem esquerda do córrego do Leitão, oposta à Fazenda do Capão. A vertente à direita do córrego do Leitão pertencia a Fazenda Capão, desde as suas nascentes até as proximidades da sede da Fazenda do Leitão, cujas terras abrangiam uma grande parte da vertente à esquerda do córrego. A divisa das duas fazendas se dava mais ou menos onde hoje está a Rua Joaquim Murtinho no bairro Santo Antônio. O fato de as terras estarem inseridas dentro da área destinada à ocupação urbana segundo a CCNC selou o destino das duas fazendas: iniciado o processo de desapropriação no final de 1894, no ano seguinte suas terras passaram a pertencer ao Estado, assim como as suas sedes e benfeitorias. 
       A Fazenda do Cercadinho, de propriedade de José Cleto da Silva Diniz abrangia as cabeceiras do córrego de mesmo nome¹ além de grande parte das suas vertentes, onde atualmente se encontram os bairros Buritis, Estoril, Havaí entre outros. A fazenda fazia limite com as fazendas do Capão e do Leitão, ao longo da crista da montanha onde hoje está a Avenida Raja Gabaglia, com a Fazenda Bom Sucesso e com o município de Nova Lima (então Villa Nova de Lima), na altura da Fazenda do Rabelo. Na porção sul ela fazia limite com a Fazenda do Calafate, que deu origem ao povoado de mesmo nome, hoje um bairro da região oeste de Belo Horizonte. As suas terras abrangiam também às nascentes do córrego das Piteiras ou Pau Grande, atualmente canalizado sob as Avenidas Silva Lobo e Barão Homem de Melo. 
    Após essa breve descrição dos antigos limites das três fazendas desapropriadas em 1894 gostaria de ressaltar que este artigo visa a correção de um erro histórico que vem acontecendo nos últimos tempos por parte da imprensa local informando que o casarão, um dos dois únicos edifícios remanescentes da época do antigo arraial pertencia a Fazenda do Cercadinho, além de trazer novamente a tona o propositalmente "esquecido" casarão, identificado nas plantas do final do Século XIX e apresentadas em um artigo sobre o vale do córrego do Leitão* escrito em 2011. 
     É um erro afirmar que o casarão pertencia a Fazenda do Cercadinho, na verdade essa fazenda  fazia limite com a Fazenda do Capão, cujas terras abrangiam às nascentes do córrego do Leitão e as terras localizadas em sua margem direita, onde se construiu o casarão. A Fazenda do Cercadinho foi desapropriada devido a inserção de suas terras na região estabelecida pela CCNC para os Sítios destinados ao abastecimento de viveres da nova capital, sendo que o córrego do Cercadinho, após a desapropriação da fazenda passou a ser utilizado como um dos mananciais responsáveis pelo abastecimento de água de Belo Horizonte, assim como o córrego da Serra. É bom salientar que o córrego do Cercadinho está na vertente oposta ao córrego do Leitão, separado pela crista da montanha ocupada pela Avenida Raja Gabaglia (porção final da avenida) e por parte do bairro Santa Lúcia.

Planta da Fazenda Capão confeccionada em 1894 quando da sua desapropriação. Estão assinaladas na planta as cabeceiras do córrego do Leitão, os limites da fazenda do Cercadinho e a "Casa da Fazendinha", construída pouco tempo antes da desapropriação. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Planta da Fazenda do Leitão, também confeccionada para fins de desapropriação. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC

Planta da Fazenda do Cercadinho datada de 1894. À esquerda se vê a divisa com a Fazenda Capão e com a Lagoa Seca. Segundo o processo de desapropriação a Fazenda não abrangia as cabeceiras do córrego do Leitão nem a região denominada Lagoa Seca, considerada devoluta segundo a Lei de Terras de 1850. A Planta acima corrobora o processo ou seja, a Casa da Fazendinha do Aglomerado Santa Lúcia não pertencia a essa fazenda, apesar da sua contemporaneidade. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Parte da Planta Geodésica do arraial de Belo Horizonte em 1895, onde se sobrepôs o traçado planejado da zona urbana da nova capital. Em destaque estão a Fazendinha, os limites das duas fazendas em estudo, a sede da Fazenda do Leitão, atual Museu Abílio Barreto e a provável sede da Fazenda Capão, à margem da antiga estrada do Mutuca. Segundo a planta, a sede da fazenda estava inserida dentro da zona planejada, o que pode ter levado a construção da Fazendinha no vale do córrego do Leitão, cujo local nesse período apresentava uma distancia considerável da zona urbana planejada. A Lagoa Seca figura na planta como uma das nascentes do córrego do Leitão. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC 

     De acordo com as Plantas acima, confeccionadas pela CCNC no final de 1894 a Fazenda do Cercadinho limitava-se as terras inseridas nos vales dos córregos do Cercadinho e Piteiras/Pau Grande, cuja divisa seria a crista da montanha onde se abriu a Avenida Raja Gabaglia na década de 70, ou seja, o divisor das sub-bacias dos córregos Piteiras/Pau Grande, Leitão e Cercadinho. Até meados do Século XX a morfologia do terreno era determinante na delimitação das propriedades, sendo que os marcos naturais (serras, montanhas, fundos de vale etc.) geralmente serviam como divisas entre as fazendas.    
     Ao analisar a Planta da Fazenda do Capão observa-se que já existia uma casa (um sitio de acordo com a Planta) no local onde se encontra a “Fazendinha”, às margens do córrego do Leitão, cujo curso nessa época corria no seu leito natural, lembrando que a Barragem Santa Lúcia seria concluída oitenta anos mais tarde. Outra coisa que chama a atenção do observador é o fato de o curso principal do córrego a montante, um pouco acima da construção que figura nas Plantas seguir para sudeste, na mesma direção atualmente da Avenida Cônsul Antonio Cadar, construída sobre o córrego na década de 70. As curvas de nível desde o casarão, às margens do córrego até o vértice do Morro Redondo e o fato de existir uma construção no final da estrada da Fazenda, figurando tanto na Planta de desapropriação quanto na Planta Geodésica de 1895 corroboram a data de construção do casarão, provavelmente finalizado meses antes da instauração do processo de desapropriação. Como dito anteriormente, o casarão foi construído, possivelmente para abrigar um integrante da família proprietária da fazenda ou mesmo a família de Ilídio Ferreira da Luz, visto que a sede da fazenda, às margens da estrada de acesso ao Mutuca e do povoado do Olhos D’água estava inserida na zona urbana segundo a Planta de 1895, mais precisamente no quarteirão formado pelas ruas Fernandes Tourinho, Sergipe e Avenida Getúlio Vargas.

Planta das Fazendas do Capão e Leitão em 1894, onde estão destacadas a divisa com a Fazenda do Cercadinho e a Fazendinha. Também se observa nas plantas que o local da divisa das duas propriedades se deva nas proximidades da Rua Joaquim Murtinho. O córrego do Zoológico, afluente do Leitão fazia parte da Fazenda em questão, assim como grande parte das terras onde se construiu o bairro de Lourdes na década de 20. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Barragem Santa Lúcia e parte do Morro do Papagaio em imagem do inicio da década de 60, às margens da antiga BR-3. A Barragem, construída anos antes, assim como a Barragem do Acaba Mundo só viriam a ser finalizadas na década de 70, lembrando que a barragem do Acaba Mundo se rompeu logo após a sua inauguração em 1975, sendo posteriormente aterrada e convertida em praça (Praça JK). 
Fonte: Acervo IBGE

A Fazendinha no Aglomerado Santa Lúcia, em imagem datada provavelmente da década de 1970. Abaixo a barragem Santa Lúcia antes da retomada das obras para a sua conclusão (1976).
Fonte: http://observatoriovilaviva.blogspot.com.br.

      Pela sua singularidade e importância para o aglomerado a Casa da Fazendinha já foi objeto de estudo de vários estudantes de arquitetura que a visitavam todos os anos. Testemunho de uma paisagem já desaparecida o casarão, atualmente coberto pelas árvores que o circundam merece o devido tratamento prometido desde 1992, ano do seu tombamento a nível municipal. O mais interessante é que, passados mais de vinte anos do seu tombamento, somente agora o Ministério Público passou a exigir providencias em relação à conservação do casarão, que se encontra em péssimo estado, como se vê nas figuras abaixo. Os atuais moradores foram retirados do imóvel devido ao grande risco de desabamento, uma forma de “expulsão” já vista em casos semelhantes quando se trata de um imóvel ou de um sitio urbano tombado.
     Infelizmente o Poder Público só conserva o que é do seu interesse ou o que é do interesse da iniciativa privada. Certamente se o casarão não fizesse parte do Aglomerado ele já estaria integrado de fato ao Patrimônio Histórico Municipal, conservado e possivelmente exercendo a função para o qual foi construído, ou mesmo estando inserido em um plano de mercantilização do patrimônio do Poder Público (gentrification). Mas é bom lembrar que essa política patrimonial não é exclusivamente brasileira, casos semelhantes ocorreram e ainda ocorrem em diversos países². Daí, pode-se concluir a imprescindibilidade urgente de disseminar em nossa sociedade a consciência e a necessidade da importância da preservação do patrimônio, lembrando que nós seres humanos somos parte de um todo, responsáveis pela construção de nossa história coletiva. Quando se permite a destruição de um bem, de uma parte da história que foi deixada pelas gerações passadas estamos rompendo a corrente do conhecimento, prejudicando a sua transmissão para as gerações futuras. Ainda dá tempo de reverter esse quadro, se assim desejarmos³.

A Fazendinha no ano de 2006. 
Fonte: Guia de Bens Tombados de Belo Horizonte, 2006.

Parte do vale do córrego do Leitão nos anos de 1956 e 2008, onde está destacada a Fazendinha. É notável a urbanização do vale entre os cinquenta e dois anos que separam as duas imagens. Na imagem superior se destaca uma parte da antiga estrada de acesso ao casarão, seguindo as curvas de nível do terreno e o curso do córrego ainda não represado. 
 Fonte: PANORAMA de Belo Horizonte; Atlas Histórico. Belo Horizonte: FJP. 1997 e Google Earth respectivamente.

A Fazendinha no ano de 2007. 
Fonte: Foto do Autor

O mesmo casarão no ano de 2013. 
Fonte: Foto do Autor

Imagem das sub-bacias dos córregos do Leitão e do Cercadinho no ano de 2008. A partir da leitura morfológica do terreno e da analise da Planta Geodésica de 1895 é possível identificar a localização aproximada das divisas das duas fazendas, além da identificação da cabeceira dos cursos d’água, apesar do adensamento urbano nas cabeceiras do córrego do Leitão. O Cercadinho, apesar da grande ocupação urbana próxima às suas nascentes ainda tem grande parte das cabeceiras preservadas, ainda que a abertura da BR-3 na década de 50 e da MG-030, além da ocupação desenfreada no bairro Belvedere tenham diminuído consideravelmente a sua área de recarga. 
Fonte: Google Earth

A Casa da Fazendinha em imagem de satélite do ano de 2008. 
Fonte: Google Earth 


* Sobre o vale do córrego do Leitão, onde falo sobre a Fazendinha recomendo a leitura do artigo O Vale do Córrego do Leitão em Belo Horizonte: Contribuições da cartografia para a compreensão da sua ocupação disponível no endereço abaixo: https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/BORSAGLI_ALESSANDRO.pdf

¹ O córrego do Cercadinho teve as suas nascentes fragmentadas quando da abertura da BR-3 na década de 50 e posteriormente da MG-030. Suas cabeceiras, em parte ainda podem ser identificadas logo acima da MG-030, na direção do Hospital Biocor. 

² Torço para que o imóvel seja plenamente recuperado, assim como fizeram com o casarão da Rua Guajajaras que também estava em ruínas. O casarão para mim é o simbolo da resistência do rural no vale, assim como a Estação Gameleira da EFCB, prestes a ruir, nos remete a um período quando os trens de subúrbio, desaparecidos devido a ignorância, a ganancia e outras "qualidades" dos rocambolescos personagens que passaram pelas administrações e seus pares (leia-se "patriarcas" dos coletivos) faziam parte do cotidiano do cidadão belorizontino. 

³ Nos últimos tempos estamos passando por um momento delicado em Belo Horizonte, as mudanças no zoneamento de diversas áreas, em particular a Pampulha e a Cidade Jardim, o projeto de adensamento do vale do ribeirão Arrudas e a destruição de parte da Lagoinha entre outros projetos - sempre imobiliários certamente levará a capital (novamente) para um caminho sem volta, da mesma forma que já aconteceu em BH e em outros centros urbanos brasileiros no passado e que hoje estão sofrendo as consequências dessas desastrosas mudanças. Já passou da hora de frear a voracidade imobiliária e do lucro a qualquer custo e pelo individualismo que reina em nossa sociedade (o nosso trânsito é um claro reflexo desse embate entre a civilidade e o individualismo). Tais atitudes  em conjunto, inclusive as decisões individualistas, vem destruído e descaracterizando bairros inteiros, contribuindo para a perda da qualidade de vida da população, que vem sofrendo (e contribuindo) as consequências há mais de cinquenta anos da verticalização desenfreada e das magnificas obras, em sua grande maioria inúteis e mal feitas. Acreditar em tais projetos definitivamente é um descalabro... 

6 comentários:

  1. Muito obrigada pelo seu trabalho!

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  2. Muito interessante e rico em detalhes, como todos os seus trabalhos. Também sou um admirador da Casa da Fazendinha, apesar de estar num estado deplorável.
    Foram colocadas umas estacas para escorá-la, pois sua situação está crítica. Parabéns, Alessandro, seu trabalho é magnífico.

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    1. Obrigado Hudson! Recomendo também a leitura do livro "Arraial de Bello Horizonte", onde pude corrigir algumas observações feitas no artigo acima, mas adianto que ela será totalmente reformada, as obras devem começar nas próximas semanas.

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  3. Eu nasci e fui criada na Fazendinha, minha bisa Maria Izabel a proprietaria falecida, sempre me contava historias sobre a casa. Ela dizia tambem que um dia a casa viria a ser um museu, com quadro das pessoas da nossa familia.
    Eu fico muito triste por ver como a casa esta hoje em dia, pois na minha infacia eu lembro do esforço da minha bisa pra encerar a madeira do piso.
    A casa tinha 8 salas, algumas eram feitas de quartos, pois havia muitos filhos e netos, meu avo Joel (ja falecido), morava em uma casa em baixo do casarao na parte frente e meu tio josue (que hoje mora em frente), morava na parte de tras, tambem em baixo do casarao, o que totalizava mais 8 comodos.
    O piso de madeira, as telhas laranjas e um quintal cheio de arvores frutiferas, era assim na minha infancia, hoje tem as casas das minhas tias e primas em volta, a casa foi fechada depois que o filho mais velho da bisa, Orlando morreu queimado na casa. As janelas e portas originais foram removidas e tudo tem concreto fechando qualquer entrada. Inclusive a casa que era do meu avo e a do tio josue. É um perigo desabar e a historia se perder de vez. Pro governo do estado isso nao é tao relevante, mas pra hitoria e pras pessoas que ali viveram, aquilo é de extrema importancia. Fico feliz com sua materia, mas la não era só uma fazenda. La foi tambem fabrica de telhas, onde os escravos moldavam as telhas em suas coxas. A minha Bisa me contava historias, ja que eu sou a bisneta mais velha dela, e a que passava tempo com ela pra minha mae poder trabalhar. Ela sempre dizia que depois que ela morresse a casa iria cair, dito e quase feito

    esqueci de mencionar sobre uma igreja que tinha entre a casa do meu avo e do tio josue, o que era um comodo enorme com banheiro, tambem em baixo do casarao. Realmente uma casa muito grande, que ja foi muito bonita.

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    1. Olá, obrigado pelo belo texto! Recomendo também a leitura do livro Arraial de Bello Horizonte, onde falo da fábrica de telhas e da cerâmica, o artigo acima é de 2012 e o livro (esta disponível gratuitamente no Issuu) traz atualizações sobre a Fazendinha.

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