Maquete do Conjunto JK onde se vê o Restaurante e a Passarela entre os dois Blocos, que não chegou a ser construída.
Fonte: Em Obras: História do Vazio em Belo Horizonte;Cosac & Naify Edições.

    Os conjuntos habitacionais na região central dos grandes centros urbanos brasileiros são uma marca registrada das décadas de 50 e 60, período que se caracteriza pela metropolização de diversas capitais. Podem-se citar como exemplo desses conjuntos construídos nesse período os Edifícios Master e o Santos Vahlis no Rio de Janeiro, o Edifício Copam em São Paulo ou mesmo o Condomínio Solar e os Edifícios Fernão Dias e Raposo Tavares em Belo Horizonte. Talvez o edifício mais emblemático desse período e que inaugura de fato a “arquitetura de massa” em Belo Horizonte devido ao numero de famílias que os conjuntos se propunham a abrigar é o Conjunto Governador Juscelino Kubitschek, ou simplesmente Conjunto JK, como é largamente conhecido.
    Os terrenos onde se construiu o Conjunto inicialmente faziam parte da reserva mantida pelo Poder Publico visando à expansão da capital dentro da zona compreendida na Avenida do Contorno, que se limitava nas primeiras décadas do Século XX entre essa Avenida na região da Floresta, área central e o bairro dos Funcionários, cujo limite era a Avenida Cristovão Colombo (leia-se Bias Fortes). No inicio da década de 20 o terreno onde posteriormente foi construído o Bloco A passou a abrigar a sede da recém-criada Escola de Aprendizes Artífices de Minas Gerais¹, que ai funcionou até a primeira metade da década de 40, quando o então Prefeito Juscelino Kubitschek, em acordo com o governo do Estado resolve demolir o prédio, ao mesmo tempo em que se consolidava a ocupação urbana do entorno da Praça Raul Soares, construída na década anterior quando da realização do Congresso Eucarístico em 1936. É bom ressaltar que onde se construiu a praça e no seu entorno existia uma Favela, removida quando se iniciaram as obras de urbanização da região.

Escola de Aprendizes Artífices de Minas Gerais demolida em 1943. Ela se localizava no local onde se construiu anos mais tarde o Bloco A do Conjunto.
Fonte: BH Nostalgia

Planta de 1928 onde se vê em destaque os quarteirões ocupados atualmente pelo Conjunto JK. Essa região nesse período estava na verdade ocupada por uma pequena favela, removida na década seguinte quando da construção da Praça Raul Soares e que, por motivos óbvios as Plantas confeccionadas no período não registravam. 
Fonte: APCBH

Praça Raul Soares no final da década de 30.
Fonte: BH Nostalgia

Praça Raul Soares no inicio da década de 50 onde figura os dois quarteirões do conjunto vazios.
Fonte: BH Nostalgia

     O terreno, extremamente valorizado desde a construção da Praça Raul Soares e da expansão dos bairros de Lourdes e Santo Agostinho continuou pertencendo ao Estado de Minas Gerais até o inicio da década de 50 quando o agora Governador Juscelino Kubitschek, em parceria com o empresário Joaquim Rolla cede o terreno para a construção de uma mega conjunto habitacional, dando todo o aparato necessário para tal realização. O projeto do Conjunto é então encomendado ao já famoso arquiteto Oscar Niemeyer que o concebe dentro das “Unités d'Habitation¹²” de Le Corbusier, construídas na França após a 2ª Guerra e que se difundiu em diversos países nas décadas seguintes, em particular nos países alinhados com o regime socialista.
    O “impacto” que o Conjunto causaria na paisagem urbana de Belo Horizonte, ressaltando que o  processo de verticalização ainda estava restrita a região central no entorno da Avenida Afonso Pena e a Praça Raul Soares pode ser vista na terceira imagem abaixo, provavelmente obtida entre os anos de 1955/56, pois os cartazes afixados no alto do edifício fazem propaganda aos candidatos Juscelino Kubitschek e José Francisco Bias Fortes a Presidência da Republica e ao Governo de Minas respectivamente. JK, quando proferiu o discurso² do anuncio da “monumental realização arquitetônica” ainda afirmou que o conjunto seria a “marca registrada” da capital mineira.
    Em 1952 Niemeyer entrega o projeto do Bloco A, cujo conjunto teria 120 metros de comprimento, ocupado o quarteirão inteiro entre a Avenida Olegário Maciel e a Rua Rio Grande do Sul. O Conjunto teria 23 andares e 647 apartamentos, estes variando desde uma “kitnet” até aos apartamentos duplex de três quartos, destinados às famílias de classe média além de um hotel que ocuparia os quatro primeiros andares. No mesmo conjunto seriam construídos todo o aparato para atender às necessidades dos moradores, os quais não precisariam deixar o Conjunto para adquirir diversos produtos, desde comercio e serviços necessários para a manutenção diária dos moradores até áreas de lazer, museu, rodoviária para atender os moradores e um hotel, seguindo o exemplo das Unidades de Habitação projetadas por Le Corbusier.

Visita de Autoridades ao canteiro de obras do Conjunto JK na década de 50.
Fonte: Desconhecida

Planta original do 1º Pavimento do Bloco A onde se destaca o projeto do Museu de Arte, o Restaurante e a Passarela, todos abandonados no decorrer das obras.
Fonte: Em Obras: História do Vazio em Belo Horizonte;Cosac & Naify Edições.

    As obras do Bloco A tiveram inicio em 1953. Logo após o inicio das obras o quarteirão abaixo do Conjunto, compreendido entre a Rua Guajajaras e a Praça Raul Soares foi cedido pelo Poder Publico para a construção do Bloco B também projetado por Niemeyer e que se caracteriza pela verticalidade (qualquer semelhança com o prédio do Congresso Nacional em Brasília não é mera coincidência), visto que o quarteirão apresenta dimensões reduzidas em relação ao quarteirão do Bloco A. O Bloco B teria 36 andares e 439 apartamentos e também abrigaria um comercio diversificado, como projetado para o bloco A. Uma passarela seria construída entre os dois blocos e constituiria uma “ligação” entre os moradores do Conjunto, talvez buscando uma unidade interrompida pela via pública, que atua como um “muro imaginário”, separando os dois blocos. Essa passarela não chegou a ser construída, pois a prefeitura vetou a sua construção por ser considerada demasiado perigosa para os veículos e pedestres da Rua Guajajaras.

O Bloco A do Conjunto JK entre os anos de 1955/56.
Fonte: APCBH Coleção José Góes

   O Conjunto visava atender a classe média, que crescia a passos largos em Belo Horizonte desde o fim da Segunda Guerra. Segundo as concepções de Niemeyer ele abrigaria desde o morador unitário que necessitava apenas de um pequeno espaço para morar até as famílias solidificadas com filhos que carecia de um espaço maior para abriga-las e de lazer para os seus filhos e para eles próprios. Seria uma “cidade dentro da cidade”, visto que todos os equipamentos necessários para o cotidiano estariam concentrados em um mesmo local. Na verdade esse projeto se revelaria anos mais tarde como utópico para o período, visto que nem Belo Horizonte e nem a sua população estava preparada para compreender tal obra de grande magnitude, que abrigaria cerca de 5.500 moradores, segundo informações do período. Uma fábula para uma cidade que ainda não havia chegado aos 400.000 habitantes e que respirava ares do interior, da conversa mansa e da cadeira na calçada nos fins de tarde.
    As obras, interrompidas diversas vezes entre o final da década de 50 e a segunda metade da década de 60 se arrastaram por toda essa década devido a falta de capital para a continuidade das obras, sendo retomada de fato em 1968, na mesma época que a capital atingia a marca de um milhas de habitantes e em 1970 começaram a ser entregues os primeiros apartamentos do Bloco A e posteriormente do Bloco B. No Bloco B, mesmo com os apartamentos sendo entregues as obras se arrastaram por toda a década de 70, sendo finalizadas apenas no inicio da década de 80. Grande parte do projeto inicial que previa lojas diversificadas, serviços e lazer foram abandonados, exceção ao terminal rodoviário inaugurado em 1985 e destinado ao embarque de turistas. Na área do Terminal foram construídas algumas lojas, destinadas ao comercio varejista e que não condiz com o projeto inicial do Conjunto.

 A construção do Conjunto em duas fases na década de 60: à esquerda as obras do Bloco A adiantadas e o Bloco B ainda em construção. À direita os dois Blocos em fase de acabamento externo no final da década. Imagens obtidas da Avenida Amazonas no cruzamento com Rua Gonçalves Dias.
Fonte: BH Nostalgia

Os dois Blocos em construção na década de 60.
Fonte: APM

O Conjunto com as obras interrompidas na década de 60.
Fonte: APCBH/ASCOM

O Conjunto JK em 1970 visto da Avenida Amazonas.
Fonte: APCBH/ASCOM

O Conjunto JK em um cartão postal da década de 70.
Fonte: BH Nostalgia

   O Conjunto se tornou uma antítese de todo o planejamento inicial: uma pequena cidade que abriga pessoas das mais variadas classes (é bom lembrar que, segundo informações do período do lançamento do projeto ele foi construído exclusivamente para a classe média da época). A grande maioria dos equipamentos projetados para atender os moradores não foram implementados, todo o comercio e os serviços existentes atualmente no conjunto não tem finalidades especificas de atender aos moradores e sim ao publico em geral. Um bom exemplo é a Delegacia da Policia Civil, estrategicamente localizada no local inicialmente destinado ao Museu de Arte e que vem “equilibrar”, ou mesmo atenuar o vandalismo e a violência que existia outrora no Conjunto. Infelizmente grande parte da população belorizontina vê o Conjunto marginalizado, e não são raras as pessoas que acreditam que a sua demolição²¹ traria um bem estar para a capital. JK nos seus últimos anos de vida fazia questão de esquece-lo quando revisava suas realizações como homem público. Oscar Niemeyer não o citava em suas entrevistas, preferindo lembrar apenas do Complexo da Pampulha²². Projetado para ser a “marca registrada” da capital mineira, o Conjunto JK se tornou na verdade o “anti cartão postal” de Belo Horizonte, uma obra monumental na qual grande parte dos belorizontinos preferem esquecer, ou fingir que ele não existe, assim como Niemeyer o fazia.
    O Conjunto JK foi um projeto audacioso, um experimento social em uma cidade que, mesmo com o titulo de capital, ainda respira com toda a sua força ares interioranos. Mas na verdade os seus concebedores estavam certos e a sua construção marcou a abertura da era dos Condomínios na capital e posteriormente nos seus arredores. Nos últimos anos explodiu a construção de Condomínios destinados a atender a uma classe especifica (o Alphaville é o exemplo clássico desses grandes Condomínios). A diferença é que a iniciativa privada atual tem capital suficiente para “vender” a imagem desses Condomínios como locais seguros e harmoniosos para se viver, o que na prática não é bem assim, e no período da construção do Conjunto JK tanto o governo quanto a iniciativa privada não tinham recursos para investir em uma obra tão vultosa para a época³, além de o Governo não se interessar mais pelo projeto, visto que a mudança de regime na década de 60, por motivos óbvios acentuou a marginalização  dos edifícios, um rótulo que o Conjunto JK carregou durante as décadas de 70 e 80 e que felizmente está mudando nesses últimos anos com as reformas que estão em andamento além do trabalho de conscientização que, aos poucos, está tirando a estigma perante a sociedade belorizontina de que o JK é um lugar sujo e marginalizado³¹.

Bloco A do Conjunto JK.
Fonte: Foto do Autor

Bloco B do Conjunto JK.
Fonte: Foto do Autor

O Conjunto JK visto desde a Praça Raul Soares.
Fonte: Foto do Autor

Imagem de Satélite do Conjunto JK em 2008.
Fonte: Google Earth


¹ Essa escola se transformaria décadas mais tarde no Centro Federal de Formação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG.

¹² Unidades de Habitação, que são os grandes edifícios construídos em Marselha por Le Corbusier após a Segunda Guerra Mundial. Essas unidades foram concebidas para atender as necessidades tradicionais das cidades tais como o comercio, serviços, lazer etc. Esses conceitos foram usados como propaganda quando do anuncio da construção do conjunto JK.

² Extraído do livro “Em obras: a História do Vazio em Belo Horizonte” de autoria do Arquiteto Carlos M. Teixeira

²¹ Isso nos remete a 1972 quando o Conjunto Pruitt-Igoe foi implodido nos EUA 17 anos após a sua construção devido aos altos índices de violência e de segregação, entre outros fatores. Muitos autores consideram que a arquitetura moderna morreu no exato momento da implosão dos edifícios.

²² Isso quando cita o Complexo da Pampulha em suas realizações como Arquiteto. Vi recentemente no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba um pequeno banner referindo-se a Pampulha, apenas. Na Sala dedicada às maquetes dos seus projetos existem obras de importância ínfima se comparadas ao Complexo da Pampulha. Lamentavelmente a obra que o projetou internacionalmente foi "esquecida" pelos responsáveis do Museu e pelo próprio Niemeyer, que supervisionou a sua criação.

³ Foi realizada uma propaganda maciça na época do lançamento do empreendimento, porém com o passar dos anos grande parte dos tópicos apresentados não foram cumpridos, o que legou ao empreendimento figurar-se perante a sociedade como utópico.

³¹ Torço para que as mudanças no Conjunto sejam em todos os âmbitos, pois as mudanças em Belo Horizonte infelizmente são muito lentas, onde muitas coisas ainda se perpetuam há décadas...

Parte da Planta Geodésica de Belo Horizonte do ano de 1895, onde se extraiu o trecho correspondente ao vale do córrego do Leitão, localizado na região centro sul de Belo Horizonte. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC

* Artigo publicado originalmente em outubro de 2012 e republicado em janeiro de 2014. Visto a descoberta de erros nos documentos oficiais referentes a região, nos quais o artigo se baseia, ele foi retirado do ar no ano de 2017, e a partir de indagações e apontamentos absurdos recebidos pelo Autor, ocorridos em março de 2019, ainda que apresentando erros, o artigo voltou ao ar. Ressalto que no mês de junho de 2019 será disponibilizada uma publicação que corrigirá os erros contidos no presente artigo, ressaltando que o mesmo não sofrerá modificações, e caso sofra, será ASSINALADA.



        Em Outubro de 1992 era tombado a nível municipal um dos únicos exemplares construídos no Século XIX ainda existentes na capital mineira, o casarão presente no Aglomerado Santa Lúcia. A “Casa da Fazendinha” ou simplesmente “Fazendinha” é um casarão existente no Aglomerado Santa Lúcia ou Morro do Papagaio, às margens da Barragem Santa Lúcia. Segundo consta no Guia de Bens Tombados de Belo Horizonte ele foi construído em 1894 para uso residencial, talvez para algum familiar ou mesmo para a família de Ilídio Ferreira da Luz, proprietário da Fazenda Capão, cujas terras abrangiam as cabeceiras do córrego do Leitão e o local onde se construiu o casarão. Atualmente o estilo predominante no casarão é o eclético com influencia neoclássica, uma característica das primeiras construções da nova capital, nesse caso aplicada em um imóvel rural. 
      Segundo a Planta Geodésica do arraial de Belo Horizonte, confeccionada em 1895 pela Comissão construtora da Nova Capital as terras da Fazenda Capão passariam a integrar parte das zonas urbana e suburbana da nova capital, assim como as terras da Fazenda do Leitão, localizada na margem esquerda do córrego do Leitão, oposta à Fazenda do Capão. A vertente à direita do córrego do Leitão pertencia a Fazenda Capão, desde as suas nascentes até as proximidades da sede da Fazenda do Leitão, cujas terras abrangiam uma grande parte da vertente à esquerda do córrego. A divisa das duas fazendas se dava mais ou menos onde hoje está a Rua Joaquim Murtinho no bairro Santo Antônio. O fato de as terras estarem inseridas dentro da área destinada à ocupação urbana segundo a CCNC selou o destino das duas fazendas: iniciado o processo de desapropriação no final de 1894, no ano seguinte suas terras passaram a pertencer ao Estado, assim como as suas sedes e benfeitorias. 
       A Fazenda do Cercadinho, de propriedade de José Cleto da Silva Diniz abrangia as cabeceiras do córrego de mesmo nome¹ além de grande parte das suas vertentes, onde atualmente se encontram os bairros Buritis, Estoril, Havaí entre outros. A fazenda fazia limite com as fazendas do Capão e do Leitão, ao longo da crista da montanha onde hoje está a Avenida Raja Gabaglia, com a Fazenda Bom Sucesso e com o município de Nova Lima (então Villa Nova de Lima), na altura da Fazenda do Rabelo. Na porção sul ela fazia limite com a Fazenda do Calafate, que deu origem ao povoado de mesmo nome, hoje um bairro da região oeste de Belo Horizonte. As suas terras abrangiam também às nascentes do córrego das Piteiras ou Pau Grande, atualmente canalizado sob as Avenidas Silva Lobo e Barão Homem de Melo. 
    Após essa breve descrição dos antigos limites das três fazendas desapropriadas em 1894 gostaria de ressaltar que este artigo visa a correção de um erro histórico que vem acontecendo nos últimos tempos por parte da imprensa local informando que o casarão, um dos dois únicos edifícios remanescentes da época do antigo arraial pertencia a Fazenda do Cercadinho, além de trazer novamente a tona o propositalmente "esquecido" casarão, identificado nas plantas do final do Século XIX e apresentadas em um artigo sobre o vale do córrego do Leitão* escrito em 2011. 
     É um erro afirmar que o casarão pertencia a Fazenda do Cercadinho, na verdade essa fazenda  fazia limite com a Fazenda do Capão, cujas terras abrangiam às nascentes do córrego do Leitão e as terras localizadas em sua margem direita, onde se construiu o casarão. A Fazenda do Cercadinho foi desapropriada devido a inserção de suas terras na região estabelecida pela CCNC para os Sítios destinados ao abastecimento de viveres da nova capital, sendo que o córrego do Cercadinho, após a desapropriação da fazenda passou a ser utilizado como um dos mananciais responsáveis pelo abastecimento de água de Belo Horizonte, assim como o córrego da Serra. É bom salientar que o córrego do Cercadinho está na vertente oposta ao córrego do Leitão, separado pela crista da montanha ocupada pela Avenida Raja Gabaglia (porção final da avenida) e por parte do bairro Santa Lúcia.

Planta da Fazenda Capão confeccionada em 1894 quando da sua desapropriação. Estão assinaladas na planta as cabeceiras do córrego do Leitão, os limites da fazenda do Cercadinho e a "Casa da Fazendinha", construída pouco tempo antes da desapropriação. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Planta da Fazenda do Leitão, também confeccionada para fins de desapropriação. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC

Planta da Fazenda do Cercadinho datada de 1894. À esquerda se vê a divisa com a Fazenda Capão e com a Lagoa Seca. Segundo o processo de desapropriação a Fazenda não abrangia as cabeceiras do córrego do Leitão nem a região denominada Lagoa Seca, considerada devoluta segundo a Lei de Terras de 1850. A Planta acima corrobora o processo ou seja, a Casa da Fazendinha do Aglomerado Santa Lúcia não pertencia a essa fazenda, apesar da sua contemporaneidade. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Parte da Planta Geodésica do arraial de Belo Horizonte em 1895, onde se sobrepôs o traçado planejado da zona urbana da nova capital. Em destaque estão a Fazendinha, os limites das duas fazendas em estudo, a sede da Fazenda do Leitão, atual Museu Abílio Barreto e a provável sede da Fazenda Capão, à margem da antiga estrada do Mutuca. Segundo a planta, a sede da fazenda estava inserida dentro da zona planejada, o que pode ter levado a construção da Fazendinha no vale do córrego do Leitão, cujo local nesse período apresentava uma distancia considerável da zona urbana planejada. A Lagoa Seca figura na planta como uma das nascentes do córrego do Leitão. 
Fonte: APCBH Acervo CCNC 

     De acordo com as Plantas acima, confeccionadas pela CCNC no final de 1894 a Fazenda do Cercadinho limitava-se as terras inseridas nos vales dos córregos do Cercadinho e Piteiras/Pau Grande, cuja divisa seria a crista da montanha onde se abriu a Avenida Raja Gabaglia na década de 70, ou seja, o divisor das sub-bacias dos córregos Piteiras/Pau Grande, Leitão e Cercadinho. Até meados do Século XX a morfologia do terreno era determinante na delimitação das propriedades, sendo que os marcos naturais (serras, montanhas, fundos de vale etc.) geralmente serviam como divisas entre as fazendas.    
     Ao analisar a Planta da Fazenda do Capão observa-se que já existia uma casa (um sitio de acordo com a Planta) no local onde se encontra a “Fazendinha”, às margens do córrego do Leitão, cujo curso nessa época corria no seu leito natural, lembrando que a Barragem Santa Lúcia seria concluída oitenta anos mais tarde. Outra coisa que chama a atenção do observador é o fato de o curso principal do córrego a montante, um pouco acima da construção que figura nas Plantas seguir para sudeste, na mesma direção atualmente da Avenida Cônsul Antonio Cadar, construída sobre o córrego na década de 70. As curvas de nível desde o casarão, às margens do córrego até o vértice do Morro Redondo e o fato de existir uma construção no final da estrada da Fazenda, figurando tanto na Planta de desapropriação quanto na Planta Geodésica de 1895 corroboram a data de construção do casarão, provavelmente finalizado meses antes da instauração do processo de desapropriação. Como dito anteriormente, o casarão foi construído, possivelmente para abrigar um integrante da família proprietária da fazenda ou mesmo a família de Ilídio Ferreira da Luz, visto que a sede da fazenda, às margens da estrada de acesso ao Mutuca e do povoado do Olhos D’água estava inserida na zona urbana segundo a Planta de 1895, mais precisamente no quarteirão formado pelas ruas Fernandes Tourinho, Sergipe e Avenida Getúlio Vargas.

Planta das Fazendas do Capão e Leitão em 1894, onde estão destacadas a divisa com a Fazenda do Cercadinho e a Fazendinha. Também se observa nas plantas que o local da divisa das duas propriedades se deva nas proximidades da Rua Joaquim Murtinho. O córrego do Zoológico, afluente do Leitão fazia parte da Fazenda em questão, assim como grande parte das terras onde se construiu o bairro de Lourdes na década de 20. 
 Fonte: APCBH Acervo CCNC

Barragem Santa Lúcia e parte do Morro do Papagaio em imagem do inicio da década de 60, às margens da antiga BR-3. A Barragem, construída anos antes, assim como a Barragem do Acaba Mundo só viriam a ser finalizadas na década de 70, lembrando que a barragem do Acaba Mundo se rompeu logo após a sua inauguração em 1975, sendo posteriormente aterrada e convertida em praça (Praça JK). 
Fonte: Acervo IBGE

A Fazendinha no Aglomerado Santa Lúcia, em imagem datada provavelmente da década de 1970. Abaixo a barragem Santa Lúcia antes da retomada das obras para a sua conclusão (1976).
Fonte: http://observatoriovilaviva.blogspot.com.br.

      Pela sua singularidade e importância para o aglomerado a Casa da Fazendinha já foi objeto de estudo de vários estudantes de arquitetura que a visitavam todos os anos. Testemunho de uma paisagem já desaparecida o casarão, atualmente coberto pelas árvores que o circundam merece o devido tratamento prometido desde 1992, ano do seu tombamento a nível municipal. O mais interessante é que, passados mais de vinte anos do seu tombamento, somente agora o Ministério Público passou a exigir providencias em relação à conservação do casarão, que se encontra em péssimo estado, como se vê nas figuras abaixo. Os atuais moradores foram retirados do imóvel devido ao grande risco de desabamento, uma forma de “expulsão” já vista em casos semelhantes quando se trata de um imóvel ou de um sitio urbano tombado.
     Infelizmente o Poder Público só conserva o que é do seu interesse ou o que é do interesse da iniciativa privada. Certamente se o casarão não fizesse parte do Aglomerado ele já estaria integrado de fato ao Patrimônio Histórico Municipal, conservado e possivelmente exercendo a função para o qual foi construído, ou mesmo estando inserido em um plano de mercantilização do patrimônio do Poder Público (gentrification). Mas é bom lembrar que essa política patrimonial não é exclusivamente brasileira, casos semelhantes ocorreram e ainda ocorrem em diversos países². Daí, pode-se concluir a imprescindibilidade urgente de disseminar em nossa sociedade a consciência e a necessidade da importância da preservação do patrimônio, lembrando que nós seres humanos somos parte de um todo, responsáveis pela construção de nossa história coletiva. Quando se permite a destruição de um bem, de uma parte da história que foi deixada pelas gerações passadas estamos rompendo a corrente do conhecimento, prejudicando a sua transmissão para as gerações futuras. Ainda dá tempo de reverter esse quadro, se assim desejarmos³.

A Fazendinha no ano de 2006. 
Fonte: Guia de Bens Tombados de Belo Horizonte, 2006.

Parte do vale do córrego do Leitão nos anos de 1956 e 2008, onde está destacada a Fazendinha. É notável a urbanização do vale entre os cinquenta e dois anos que separam as duas imagens. Na imagem superior se destaca uma parte da antiga estrada de acesso ao casarão, seguindo as curvas de nível do terreno e o curso do córrego ainda não represado. 
 Fonte: PANORAMA de Belo Horizonte; Atlas Histórico. Belo Horizonte: FJP. 1997 e Google Earth respectivamente.

A Fazendinha no ano de 2007. 
Fonte: Foto do Autor

O mesmo casarão no ano de 2013. 
Fonte: Foto do Autor

Imagem das sub-bacias dos córregos do Leitão e do Cercadinho no ano de 2008. A partir da leitura morfológica do terreno e da analise da Planta Geodésica de 1895 é possível identificar a localização aproximada das divisas das duas fazendas, além da identificação da cabeceira dos cursos d’água, apesar do adensamento urbano nas cabeceiras do córrego do Leitão. O Cercadinho, apesar da grande ocupação urbana próxima às suas nascentes ainda tem grande parte das cabeceiras preservadas, ainda que a abertura da BR-3 na década de 50 e da MG-030, além da ocupação desenfreada no bairro Belvedere tenham diminuído consideravelmente a sua área de recarga. 
Fonte: Google Earth

A Casa da Fazendinha em imagem de satélite do ano de 2008. 
Fonte: Google Earth 


* Sobre o vale do córrego do Leitão, onde falo sobre a Fazendinha recomendo a leitura do artigo O Vale do Córrego do Leitão em Belo Horizonte: Contribuições da cartografia para a compreensão da sua ocupação disponível no endereço abaixo: https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/BORSAGLI_ALESSANDRO.pdf

¹ O córrego do Cercadinho teve as suas nascentes fragmentadas quando da abertura da BR-3 na década de 50 e posteriormente da MG-030. Suas cabeceiras, em parte ainda podem ser identificadas logo acima da MG-030, na direção do Hospital Biocor. 

² Torço para que o imóvel seja plenamente recuperado, assim como fizeram com o casarão da Rua Guajajaras que também estava em ruínas. O casarão para mim é o simbolo da resistência do rural no vale, assim como a Estação Gameleira da EFCB, prestes a ruir, nos remete a um período quando os trens de subúrbio, desaparecidos devido a ignorância, a ganancia e outras "qualidades" dos rocambolescos personagens que passaram pelas administrações e seus pares (leia-se "patriarcas" dos coletivos) faziam parte do cotidiano do cidadão belorizontino. 

³ Nos últimos tempos estamos passando por um momento delicado em Belo Horizonte, as mudanças no zoneamento de diversas áreas, em particular a Pampulha e a Cidade Jardim, o projeto de adensamento do vale do ribeirão Arrudas e a destruição de parte da Lagoinha entre outros projetos - sempre imobiliários certamente levará a capital (novamente) para um caminho sem volta, da mesma forma que já aconteceu em BH e em outros centros urbanos brasileiros no passado e que hoje estão sofrendo as consequências dessas desastrosas mudanças. Já passou da hora de frear a voracidade imobiliária e do lucro a qualquer custo e pelo individualismo que reina em nossa sociedade (o nosso trânsito é um claro reflexo desse embate entre a civilidade e o individualismo). Tais atitudes  em conjunto, inclusive as decisões individualistas, vem destruído e descaracterizando bairros inteiros, contribuindo para a perda da qualidade de vida da população, que vem sofrendo (e contribuindo) as consequências há mais de cinquenta anos da verticalização desenfreada e das magnificas obras, em sua grande maioria inúteis e mal feitas. Acreditar em tais projetos definitivamente é um descalabro... 
O poluído córrego do Gentio na Rua Outono em 1966, cujas margens eram utilizadas para o despejo de lixo e entulho dos moradores da região e mesmo de locais mais distantes. A imagem atesta o desrespeito da população e a negligencia do Poder Público em relação aos cursos d'água de Belo Horizonte.
Fonte: APCBH/ASCOM

O córrego do Gentio, principal afluente do córrego do Acaba Mundo, tem as suas nascentes localizadas na Serra do Curral, canalizadas atualmente sob as ruas Francisco Deslandes, Vitorio Marçola e Odilon Braga (esta considerada a verdadeira nascente do córrego, próximo a Fundação Guignard). A região atravessada pelo curso d’água, assim como ocorreu com a sub bacia do Acaba Mundo, foi inserida nas terras da Colônia Agrícola Adalberto Ferraz, que existiu onde estão atualmente os bairros Carno, Sion, Anchieta e Cruzeiro. Após a anexação à 1ª Seção Suburbana em 1912 as terras pertencentes a bacia do córrego do Gentio foram sendo gradativamente ocupadas, apesar da falta de infra estrutura urbana nessa porção da capital, escassamente povoada. 
Assim como os demais cursos d’água que atravessam a zona urbana de Belo Horizonte compreendida dentro dos limites da Avenida do Contorno, o córrego do Gentio sofreu ao longo do Século XX o mesmo processo de degradação e poluição de suas águas devido a ocupação das suas vertentes, inicialmente dos lotes mais próximos a Avenida do Contorno e Rua Grão Mogol, e a partir da segunda metade da década de 40 as vertentes a direita da Rua Pium i, correspondentes aos bairros Carmo e Anchieta e a região da caixa d’água do Cruzeiro, nesse período ocupada pela Favela do Pindura Saia. Tal degradação se deu devido a falta de investimentos na infra estrutura urbana (principalmente o saneamento) e da venda de diversos lotes que davam fundo para o curso d’água, onde o despejo de esgotos e de lixo era feito diretamente nele.

Córrego do Gentio na Planta Cadastral de 1928.
Fonte: APCBH

O córrego do Gentio e as suas respectivas ruas construídas sobre o seu leito em imagem aérea de 1953. À direita parte do córrego do Acaba Mundo, encaixotado atualmente sob a Avenida Uruguai.
Fonte: APCBH

Na década de 60, a região sul de Belo Horizonte passou a ser prioritária para a expansão urbana da capital, visando às camadas mais abastadas (recomendo a leitura do artigo Metamorfoses Urbanas: Avenida Afonso Pena). A arrecadação aumentaria com a urbanização das vertentes e canalização dos córregos já poluídos da região, no caso aqui o Gentio e seus afluentes, convertidos em emissários de esgotos que não davam conta dos efluentes das residências, cuja ocupação seguia para as suas cabeceiras na Serra do Curral. E sobre o seu leito seriam abertas as principais vias de acesso aos bairros, no caso as Ruas Odilon Braga e Vitorio Marçola, além da Avenida Francisco Deslandes.
Nesse contexto, para a melhoria viária e sanitária, visto que os córregos se encontravam extremamente poluídos foi empreendida pela Prefeitura o alargamento do canal e a cobertura do Acaba Mundo entre os anos de 1963 e 1965 (recomendo a leitura do artigo Qualquer semelhança não é mera coincidência – o destino dos cursos d’água que atravessam a capital) e em 1966 a canalização e cobertura do córrego do Gentio e seus afluentes, além do alargamento do canal coberto na Rua Outono. Tal obra viria a se arrastar por mais de dois anos, visto que a obra, inserida no programa Nova BH 66¹ foi prejudicada com a descontinuação de grande parte do programa pela gestão Souza Lima. Tal obra foi vista por grande parte dos moradores da região como a solução dos problemas das enchentes nos períodos chuvosos e mesmo sanitários, visto que os esgotos eram despejados diretamente no leito do córrego e continuam sendo, apesar do seu canal atualmente não comportar tal volume²

Alargamento da canalização e cobertura do córrego do Gentio na Rua Outono em 1966, dentro do programa Nova BH 66. Nesse período, a cobertura dos cursos d'água e o asfaltamento das vias existentes nas margens dos rios eram vistos como um embelezamento da paisagem urbana.
Fonte: APCBH/ASCOM 

Inicio da antiga canalização do Gentio, no cruzamento das Ruas Outono e Andalizita em 1966.
Fonte: APCBH/ASCOM

Canalização e alargamento do canal do Gentio na Rua Andaluzita em 1966. 
Fonte: APCBH/ASCOM

Rua Vitorio Marçola no final da década de 1960. Abaixo da via corre atualmente um dos braços do córrego do Gentio.
Fonte: APCBH/ASCOM

Parte da Bacia do córrego do Acaba Mundo, onde aparece em destaque o curso atual do córrego do Gentio (encaixotado).
Fonte: PBH

Atualmente sabe-se que tais obras empregadas por toda Belo Horizonte não resolveram o problema das enchentes, na verdade agravou, visto que a impermeabilização do solo, a retirada das árvores e supressão de pequenas matas, a ocupação e o adensamento desenfreado das vertentes e dos fundos de vale (as famigeradas Avenidas “Sanitárias”) aumentou consideravelmente a vazão dos cursos d’água de Belo Horizonte. O Gentio, atualmente identificável pelos gradis nas ruas e pelo antigo leito, perceptível apenas na Rua Caldas é um dos clássicos exemplos de como não deve se tratar um curso d’água no meio urbano, ainda não assimilado pelo Poder Público, que continua a promover a cobertura do ribeirão Arrudas e agora (2013) anunciando o aumento do coeficiente de aproveitamento dos terrenos no vale do Arrudas, apesar do Decreto 4.408  de Janeiro de 1983 que proibia novas edificações ao longo dos cursos d’água da capital, em particular o Arrudas, lembrando que tanto o bairro da Lagoinha quanto o de Santa Tereza, ameaçados pelo faraônico projeto Nova BH (2013) pertencem a bacia do Arrudas. Transcrevo abaixo o Decreto:

O Prefeito de Belo Horizonte, no uso de suas atribuições, considerando:

I - que as disposições do item III, do art. IV, da Lei Federal 6.766, de 19.12.79 e o disposto nos artigos 52 combinado com o art. 9º, § 1º da Lei Municipal nº 2.662, de 29.11.76, justificam as determinações deste Decreto;
II - que a inobservância daqueles dispositivos tem sido fator de graves e irreparáveis danos causados à população, com toda a sequela de tragédias, que, não raro, se traduzem na desolação e no lamentável desenlace fatal de muitos munícipes;
III - que, além das providências já tomadas para diminuição dos transtornos ocasionados aos moradores da região assolada pelas enchentes, compete ao Poder Público tomar medidas acauteladoras, que previnam a repetição futura dos lamentáveis acontecimentos, que tanto sofrimento e prejuízos causaram à população, decreta:

Art. 1º - As faixas de terreno que margeiam os cursos d’água existentes em Belo Horizonte, notadamente as que se situam de um e outro lado do Ribeirão do Arrudas e seus afluentes, são classificados "nom aedificandi", na forma da Lei Federal nº6.766/79. 
Art. 2º - O Município, sobre não aprovar qualquer edificação nas referidas áreas, promoverá a erradicação das construções clandestinas ali já existentes e providenciará a remoção dos moradores para locais adequados. 
Art. 3º - A Prefeitura fiscalizará permanentemente as regiões delimitadas para evitar novas invasões, e demolirá as que ali se construírem, sem qualquer ressarcimento aos que tentarem a violação das Leis e do disposto neste Decreto. 
Art. 4º - Revogadas as disposições em contrário, este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. 

Belo Horizonte, 13 de Janeiro de 1983

Júlio Arnoldo Laender
Prefeito




* Posteriormente divulgarei aqui e pela página do Facebook noticias mais detalhadas sobre a história de alguns cursos d'água de Belo Horizonte. Aguardem que virão novidades.

¹ Esse programa, lançado após o Golpe Militar de 1964 marca a prioridade do veiculo nas politicas urbanas da capital mineira, e a consequente perda de espaço na urbs pelo pedestre. Uma das prioridades do programa era a canalização e cobertura dos córregos para a ampliação das vias destinadas aos veículos individuais e coletivos movidos a Diesel. Qualquer semelhança com o Nova BH de 2013 NÃO é mera coincidência...

² Vi e ainda vejo o esgoto transbordar em diversos pontos do bairro nesses últimos meses, provavelmente devido a impossibilidade do canal e dos emissários comportar tamanho volume de efluentes.
Moradores de Rua na margem esquerda do Ribeirão Arrudas, no cruzamento da Avenida do Contorno e Rua Conquista.
Fonte: APCBH/ASCOM 

      Belo Horizonte já nasceu como uma cidade segregacionista. Desde a sua construção sempre houve um esforço por parte do Poder Público para tentar afastar ao máximo os operários e moradores de baixa renda da Zona Urbana compreendida dentro dos limites da Avenida do Contorno, além de parte dos antigos moradores do arraial do Curral del Rey (recomendo a leitura do subcapítulo “As Favelas da Capital” dentro do Artigo dedicado a Década de 50). Ainda assim, apesar dos esforços por parte dos governantes e das leis segregacionistas elaboradas por eles para a urbanização e venda de lotes na zona planejada uma grande parcela da população segregada formaram as primeiras favelas da capital, sendo que grande parte delas se encontravam dentro dos limites da Contorno nas primeiras décadas do Século XX, mais precisamente no Barro Preto e ao longo do Córrego do Leitão. É bom ressaltar que foi cogitada por alguns políticos mineiros a "devolução" dos operários brasileiros que construíram a nova capital para os seus locais de origem após o término das obras, uma ideia que, de tão absurda, não merece comentários aqui¹.   
      No decorrer das décadas do Século XX essa população foi sendo, aos poucos, expulsas de suas moradias na medida em que se urbanizavam as áreas ainda não regularizadas conforme a Planta da CCNC de 1895, sendo obrigadas a ocupar as áreas mais afastadas do centro e as várzeas e vertentes dos cursos d’água, como por exemplo os Córregos do Leitão e Piteiras. Um caso clássico dessa expulsão foi a Favela da Barroca, que existiu na região hoje ocupada pela Assembleia Legislativa. Os moradores (ou operários), expulsos no período da criação do bairro Santo Agostinho formaram o Morro do Querosene e a Vila dos Marmiteiros, áreas consideradas periféricas e que se encontravam fora dos limites da Contorno. Vale destacar que a presença da população de baixa renda (os operários) dentro da zona urbana projetada pela CCNC se configurava perante a sociedade belorizontina e ao Poder Público como uma ameaça ao projeto concebido para uma elite especifica e com recursos suficientes para adquirir os lotes disponibilizados pelo Poder Público na medida em que este urbanizava as áreas conforme a Planta de 1894. 
     A partir da década de 50 houve um grande aumento do número de Favelas devido ao aumento populacional de Belo Horizonte, que havia se tornado um importante polo de atração da população do interior do Estado e mesmo de outros Estados, visto que a capital mineira estava no caminho via ferrovia de São Paulo, que havia se tornado o centro convergente de grande parte dos imigrantes nordestinos e também a meio caminho do Rio de Janeiro, então Capital Federal. É bom lembrar que a Linha do Centro da Central do Brasil passava pela capital mineira e era por ela que o imigrante nordestino que vinha de Trem se deslocava, desde o entroncamento da Central com a VFFLB (Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro) em Monte Azul. Na virada da década de 50 para 60 Belo Horizonte não estava preparada para receber tamanha população, visto que os equipamentos urbanos necessários para dar tal suporte não foram expandidos pela Municipalidade para todas as áreas, sob a alegação de falta de recursos. E as favelas foram se formando em todas as direções, principalmente para oeste, atraídas pela proximidade da Cidade Industrial. 
     A década de 60 foi marcada pelo caos urbano em quase todos os setores, desde o saneamento básico até a limpeza de ruas e a coleta de lixo. Quem mais sofria com esse caos era a população de baixa renda, que penava com a falta de água encanada e a coleta de esgoto (houve nessa década diversas epidemias em Belo Horizonte que assolaram principalmente a população carente). A questão das moradias também se agravou e o número de moradores de rua aumentou consideravelmente ao longo da década, sendo que a grande maioria se concentrava nas áreas mais próximas ao centro da capital. 
    As encostas dos morros próximos a Avenida do Contorno também foram sistematicamente ocupadas, assim como as margens dos cursos d’água, em particular o Ribeirão Arrudas, que já apresentava um alto grau de poluição em suas águas. Essa ocupação irregular era a mais preocupante, pois as enchentes do Ribeirão eram constantes e sempre faziam vitimas fatais. Somente na década de 70 é que se teve inicio a remoção, de forma bastante lenta das famílias ribeirinhas, mas esse período ficou marcado por duas grandes tragédias: as grandes tragédias dos períodos chuvosos de 79 e 83. 
    Mas por ora iremos nos deter na década de 60, década das fotos aqui publicadas. Esse período se caracterizou pela grande favelização, talvez proporcionado não só pela metropolização, mas também pelos movimentos sociais que surgiram entre 1960 e 1964, período em que as invasões e ocupação de áreas inabitadas e inabitáveis se espalharam por toda Belo Horizonte, desde morros adjacentes aos bairros até as margens das linhas férreas e as margens dos cursos d’água.

Favela Buraco do Peru no Carlos Prates em 1965.
Fonte: APCBH/ASCOM

Favela não identificada em um fundo de vale.
Fonte: APCBH/ASCOM

Parte da Favela do Pindura Saia no bairro Cruzeiro em 1966.
Fonte: APCBH/ASCOM

A mesma Favela logo acima da Caixa D'água do Cruzeiro.
Fonte: APCBH/ASCOM

Barracos construídos nas margens do Ribeirão Arrudas.
Fonte: APCBH/ASCOM

     Muitos dos aglomerados ainda existentes se formaram nesse período, ao mesmo tempo em que outros desapareceriam como o Pindura Saia e a Favela da Alvorada, dissecados ou erradicados entre o final da década de 60 e o inicio da década de 70. Outros núcleos, em particular os que existiam nas margens do Arrudas só foram extintos devido as tragédias que assolaram a capital nas décadas de 70 e 80 e que tiveram grande repercussão na sociedade. Podemos citar as Favelas Gogó da Ema e União, extintas após a grande enchente de 1983 e os aglomerados que existiam na região da Gameleira, extintos quando do prolongamento da Avenida Tereza Cristina em 1996/1998. E é sempre bom ressaltar que o Poder Público geralmente só tomava (ou toma, como queiram) providencias, nem sempre benéficas, em relação às condições de vida, saúde e habitação dessa população quando ocorre uma grande tragédia, ou quando ele é obrigado a expandir as vias urbanas em prol da melhoria da mobilidade urbana. Mas a atuação do Poder Público em relação aos Aglomerados se trata de um tema mais complexo que será posteriormente abordado.

Favela do Pombal no bairro Serra.
Fonte: APCBH/ASCOM

Morro do Querosene às margens da antiga estrada de acesso ao Sanatório Morro das Pedras.
Fonte: APCBH/ASCOM

Morro do Papagaio às margens da antiga BR-3.
Fonte: APCBH/ASCOM

Barracos nas margens do Ribeirão Arrudas, no cruzamento da Avenida Tereza Cristina e Rua Santa Quitéria.
Fonte: APCBH/ASCOM

Barraco na beira da linha férrea da Central do Brasil.
Fonte: APCBH/ASCOM

Desmonte de Barracos construídos nas margens da linha férrea.
Fonte: APCBH/ASCOM

Parte da Favela do Perrela em 1965.
Fonte: APCBH/ASCOM

Cafuas de tábuas em local não identificado.
Fonte: APCBH/ASCOM

Favela União às margens do Ribeirão Arrudas em 1983.
Fonte: Acervo PLAMBEL

Mapa de 1983 sinalizando as principais Favelas que existiam nas margens do Ribeirão Arrudas.
Fonte: Acervo PLAMBEL


¹ Certamente, se essa medida fosse implementada, quem trabalharia na pequena corte belorizontina e seria responsável pelo desenvolvimento da urbs seriam apenas os imigrantes estrangeiros e os familiares da "pura nobreza mineira". Como disse o grande Antropólogo Darcy Ribeiro "no Brasil se fez um gênero humano novo e a fusão da herança genética e cultural de vários povos". Certamente a "infante" aristocracia republicana mineira não entendia (e muitos ainda não entendem) o quão rico é o Brasil e o seu pluralismo cheio de originalidade, sem dúvida uma nação que deu certo.
Pequena retificação do leito do Ribeirão Arrudas em 1960.
Fonte: APCBH/ASCOM


A imagem acima apresenta uma retificação no leito do ribeirão Arrudas, ou um desvio, como está sinalizada a imagem oficialmente, realizada na zona suburbana de Belo Horizonte, mais precisamente na região leste da capital, entre os bairros de Santa Tereza e Santa Efigênia. Tal obra, empreendida em Junho de 1960 visava suprimir um dos inúmeros meandros do curso d’água, possivelmente para melhorar a sua vazão, talvez para aumentar a área urbanizada do entorno do ribeirão ou mesmo diminuir a magnitude das enchentes que assolavam a região no período, lembrando que a canalização do Arrudas terminava a cerca de três quilômetros à montante do local retificado, e a velocidade das águas do ribeirão nos períodos chuvosos era notável, visto que a canalização facilitava o escoamento e a drenagem da zona urbana planejada, em detrimento aos bairros da zona suburbana à jusante da ponte do Perrela, ponto final da canalização. 
A pequena retificação* foi realizada nas proximidades da primitiva ponte do Cardoso, que ligava os bairros de Santa Tereza e Santa Efigênia, substituída na década de 80 pelo viaduto que liga a Avenida dos Andradas ao bairro de Santa Tereza. É importante ressaltar que nesse mesmo local existiu a parada do Cardoso, ponto de desembarque dos passageiros dos trens de Subúrbio da Central do Brasil. O entorno do trecho retificado em 1960 foi ocupado entre as décadas de 60 e 80 pelas favelas União e Gogó da Ema na margem esquerda do ribeirão, e pela Vila São Rafael, na margem direita.
Após a enchente de 1983 a retificação desapareceu junto com as casas remanescentes das favelas que não sucumbiram às águas do ribeirão, dando lugar a retificação e a canalização, estendida desde a Avenida do Contorno até a Avenida Silviano Brandão, na confluência do ribeirão com o córrego da Mata.

Canal do ribeirão após a pequena retificação empreendida em 1960. Ao fundo parte do bairro Pompéia.
Fonte: APCBH/ASCOM

Local da retificação do ribeirão sinalizado na Planta de 1961, à direta da linha férrea da Central do Brasil.
Fonte: APM

A retificação vista da margem direita do Arrudas, bairro de Santa Efigênia.
Fonte: APCBH/ASCOM

Ribeirão Arrudas na região leste de BH no final da década de 70. Abaixo a Favela Gogó da Ema, desaparecida quando da retificação e canalização e Vila São Rafael. À esquerda da imagem está sinalizado o local da retificação, logo abaixo da ponte do Cardoso.
Fonte: APCBH Coleção José Góes

Trecho logo acima da retificação em 1983, na margem esquerda do Arrudas. Em primeiro plano as obras de extensão da retificação paralisadas, ao fundo as casas remanescentes da Favela União junto a margem erodida do ribeirão e parte das Ruas Mármore e Conselheiro Rocha.
Fonte: Acervo PLAMBEL


* Toda e qualquer retificação de um curso d'água, seja ela pequena ou não acarreta uma mudança na dinâmica do curso d'água, desde a extinção do seu leito original, o amento da velocidade das águas, a agressão à morfologia do local, ao assoreamento do curso d'água até a um impacto na vida aquática e na fauna e flora terrestre, em um âmbito local e mesmo regional. Tal técnica empregada para a solução das enchentes no meio urbano e para a melhoria da drenagem urbana provoca a extinção das várzeas e o desaparecimento do traçado original do curso d'água, ao mesmo tempo em que se "ganha" porções de terra estratégicas para os agentes imobiliários. Nesse momento em que se celebra a conclusão de mais um trecho do "magnifico" Boulevard Arrudas, sem dúvida, se torna necessária uma profunda reflexão da sociedade e do Poder Público em relação a forma em que se trata os cursos d'água no meio urbano, tão discutida neste blog, para que tais erros não sejam cometidos nos centros urbanos brasileiros que estão em processo de desenvolvimento e que certamente irão apresentar problemas semelhantes, no que diz respeito a ocupação dos fundos de vale e das várzeas dos cursos d'água, entre outras coisas.

Rios Invisíveis da Metrópole Mineira

gif maker Córrego do Acaba Mundo 1928/APM - By Belisa Murta/Micrópolis