Canalização do córrego da Serra na zona urbana de Belo Horizonte em 1928.
Fonte: FGV/CPDOC

Muitos dos artigos publicados neste Blog/Site tratam da questão da drenagem urbana e dos cursos d’água em Belo Horizonte. É um assunto realmente interessante e singular no caso de BH, pois os cursos d’água, com exceção do Ribeirão Arrudas e dos metros finais do córrego do Acaba Mundo foram ignorados pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) ao locar a Planta da Cidade de Minas no sitio do então arraial de Belo Horizonte. Como já se expôs em outros artigos os córregos que atravessam a zona urbana da capital[1] foram retificados e canalizados a partir da década de 1920 para permitir a expansão urbana para a região sul da capital, região destinada às camadas mais abastadas. Os córregos foram retificados para as vias mais próximas do seu leito natural como os córregos do Acaba Mundo no bairro Funcionários e o Leitão no bairro de Lourdes. O Acaba Mundo é um bom exemplo de como se deu a retificação, antes o seu leito atravessava as ruas Paraibuna (Professor Morais) e Rio Grande do Norte, seguindo entre os quarteirões planejados, atravessava a Avenida Afonso Pena e seguia paralela a Rua Bernardo Guimarães até o Largo da Boa Viagem, entrando logo abaixo do Largo no Parque Municipal. A sua retificação e canalização para a Rua Professor Morais e Afonso Pena proporcionou a expansão urbana do bairro Funcionários, interrompida nesse trecho por causa do leito do córrego, que foi então aterrado com material proveniente da Praça do Cruzeiro. Uma retificação visa o ganho de terras para empreender a urbanização e para amenizar o efeito causado pelas enchentes em um âmbito local.
Já o Ribeirão Arrudas segundo a Planta de 1895 inicialmente seria retificado e canalizado apenas no trecho que atravessa a zona urbana da capital. O trecho compreendido dentro do projeto primitivo do Parque Municipal continuaria a correr em seu leito natural, assim como o Acaba Mundo correria também em seu leito natural dentro do Parque, formando os Lagos e desaguando no Arrudas. Na verdade o projeto primitivo do Parque nunca saiu da Planta, ficando limitado à margem direita do Ribeirão, que correu em seu leito natural nesse local até a década de 20, quando então foi criada a Avenida do Canal, que não existia no projeto inicial da nova capital e posteriormente rebatizada de Avenida dos Andradas, em homenagem ao então Presidente do Estado. Entre 1897 e 1940 os diversos trechos do ribeirão dentro da zona urbana foram sendo retificados e canalizados em diferentes administrações, cada uma delas empregando um processo diferente de revestimento do canal. Por isso que o Arrudas apresentava até a década de 80, entre o Barro Preto e a região central diversos trechos diferentes entre si no que diz respeito a largura e ao revestimento do canal.

Parte da Planta Geodésica de 1895 onde estão sinalizados os principais córregos que atravessam a Zona Urbana de Belo Horizonte e o ribeirão Arrudas, receptor das águas dos cursos d'água em destaque.
Fonte: APCBH Acervo CCNC


 Canalização do ribeirão Arrudas em 1928. À esquerda o emissário construído ao longo da Avenida dos Andradas, cujo despejo de esgoto se dava no termino da canalização, abaixo da Ponte do Perrela.
Fonte:FGV/CPDOC 

 Obras de canalização no antigo leito do córrego do Acaba Mundo, posteriormente aterrado para a regularização e urbanização do bairro Funcionários.
Fonte:FGV/CPDOC 

Retificação e canalização do ribeirão Arrudas na altura do bairro Carlos Prates em 1935.
Fonte: APCBH

 Retificação e canalização do ribeirão Arrudas na altura do Parque Municipal em 1928.
Fonte: APM

 Córrego do Leitão canalizado e retificado na Rua São Paulo
Fonte: FGV/CPDOC

 Córrego do Acaba Mundo canalizado na Avenida Afonso Pena.
Fonte: APM

Os leitos distintos do Ribeirão Arrudas em relatório do Plambel de 1975.
Fonte: Acervo PLAMBEL

Á partir de 1946 a capital cresceu vertiginosamente, apresentando entre as décadas de 1950 e 1970 a maior taxa de crescimento do país e os cursos d’água passaram a sofrer as consequências desse crescimento. Suas águas, que desde os primeiros anos sofriam com a poluição passaram a receber todo tipo de dejetos e lixo domestico, visto que a coleta de lixo, precária entrou em colapso na década de 60, o que levou uma parte da população a se livrar do lixo domestico nos cursos d’água a céu aberto. A rede e os emissários de esgotos não davam conta devido a falta de investimentos por parte da Prefeitura. Havia também o problema da mobilidade urbana que, por causa do grande adensamento da região central e adjacências e do aumento da frota de veículos já apresentavam congestionamentos nos horários de pico em diversos locais, ao mesmo tempo em que o transporte público de responsabilidade da Prefeitura se deteriorava em favor dos concessionários de ônibus.
Da mesma forma que acontecia em outros centros urbanos brasileiros, era uma questão de tempo a cobertura dos córregos dentro da zona urbana de BH. É bom lembrar que o córrego da Serra já se encontrava coberto desde a década de 30 dentro da zona urbana, apenas o trecho perto das suas nascentes continuava a correr em leito natural, e o córrego do Barro Preto, poluído havia sido coberto em 1928 em toda a sua extensão.
Entre os anos de 1963 e 1966 o córrego do Acaba Mundo foi coberto na Rua Professor Morais e ao longo da antiga BR-3 (Avenida Nossa Senhora do Carmo), na década de 70 ele foi coberto para a abertura da Avenida Uruguai e em 1980 ele foi fechado no trecho da Avenida Afonso Pena. Ainda na década de 70 foram cobertos os córregos do Leitão e do Pastinho[2], esse ultimo para o alargamento da Avenida Pedro II, uma das vias mais problemáticas no que diz respeito à mobilidade urbana, até os dias atuais.
Grande parte da população e o Poder Público viam esses cursos d’água como um entrave para o desenvolvimento da capital (na década de 60 as palavras sanitárias e estéticas estavam na moda nos documentos oficiais, quando se referiam as obras de lajeamento dos córregos), assim como a arborização da região central, suprimida ou substituída a partir da década de 60, em muitos casos sob protesto da população. Mas com os cursos d’água isso não aconteceu, na verdade a própria população pedia medidas urgentes para a solução dos problemas causados pelos córregos, desde o mau cheiro causado pela poluição das águas até a lama trazida pelas enxurradas nos períodos chuvosos e pelas enchentes que levavam o lixo e a sujeira dos córregos para as vias. Em muitos casos quem causava tais problemas era a própria população, devido à falta de consciência, como escrevi no artigo “Qualquer semelhança não é mera coincidência– os destinos dos cursos d’água que atravessam a capital”.

"A falta de conscientização da população naquela época era alarmante, pois os cursos d’água eram simplesmente tratados como deposito de lixo, pois para eles a água leva tudo que é indesejável nos centros urbanos como o lixo, esgotos, animais mortos etc. a Prefeitura por sua vez não ajudava, pois o sistema de coleta de lixo estava à beira de um colapso. As enchentes, frequentes nesse período levava para as ruas e avenidas todo o material depositado nos cursos d’água, aumentando ainda mais o desejo de ver os córregos erradicados da área urbana, ou seja, na verdade era esconder o “problema” debaixo do tapete. E a população apoiou e aplaudiu os fechamentos dos cursos d’água". 

      Como se afirmou acima a cobertura dos córregos escondeu o problema da poluição “debaixo do tapete”, além de contribuir para a melhoria da mobilidade na região central e para o embelezamento. É bom ressaltar que tais obras estavam em conformidade com os investimentos do Governo Federal que priorizavam a melhoria do transporte e para o saneamento dos grandes centros urbanos. Em Belo Horizonte tais obras contribuíram para a melhoria do transporte individual, apenas. O transporte coletivo piorava a cada ano que passava, visto que a crescente população passou a depender somente dos ônibus administrados pelos concessionários. Os trólebus haviam sido extintos em 1969 após pressões exercidas pelos concessionários, assim como os ramais férreos se deterioravam ano após ano, ao mesmo tempo em que se criavam novas linhas de ônibus.
  
O Vale do córrego do Leitão, Cidade Jardim e Morro do Querosene em 1955. Sobre o córrego nesse exato local foi aberta a Avenida Prudente de Morais em 1970.
Fonte: APCBH/ Coleção José Góes

O córrego do Acaba Mundo em 1949 no cruzamento das Ruas Professor Morais e Tomé de Souza.
Fonte: APCBH/ASCOM 

 Córrego do Leitão na Rua Tupis na década de 50.
Fonte: APCBH/ASCOM

Ribeirão Arrudas em 1963 no bairro da Lagoinha. Ao fundo a Ponte do Bedeco e à esquerda o Cine São Geraldo.
Fonte: APCBH/ASCOM

Remoção da alvenaria de pedra para o alargamento da canalização e cobertura do córrego do Acaba Mundo na Rua Professor Morais em 1963.
Fonte: APCBH/ASCOM

Remoção da alvenaria de pedra do córrego na mesma rua.
Fonte: APCBH/ASCOM

O córrego erradicado da paisagem urbana em 1965 na Rua Professor Morais.
Fonte: APCBH/ASCOM

Cobertura do córrego do Leitão na Rua Padre Belchior em 1971.
Fonte: Desconhecida

 Canalização e cobertura do mesmo córrego para a abertura da Avenida Prudente de Morais em 1970.
Fonte: APCBH/ASCOM

Reabilitação e Renaturalização dos cursos d'água, é possível?

Muitos de vocês devem se perguntar por que a maioria dos artigos sobre os cursos d’água de Belo Horizonte abordam os córregos que nascem e atravessam a região centro-sul da capital. Em primeiro lugar, por eles atravessarem a zona urbana planejada pela CCNC, local onde se concentravam a maioria dos aparatos administrativos, do comercio, de educação e de serviços desde 1897, ano da inauguração da capital, é sem duvida a região que apresenta maior documentação disponível para pesquisas, além de inúmeras imagens que nos permitem compreender as mudanças na paisagem ao longo das décadas. A região central (primitivamente denominada bairro comercial) de Belo Horizonte se encontra inserida nas micro bacias dos córregos do Leitão, Acaba Mundo e Serra, além da sub-bacia do ribeirão Arrudas.
A região sempre foi de prioridade do Poder Público para a instalação e manutenção dos equipamentos urbanos necessários para o funcionamento da cidade e para os espaços públicos. Esses fatores nos ajudam a compreender o porquê da verticalização ter se iniciado na região central, e posteriormente a congestão urbana, a decadência dos espaços públicos e o descontrole da verticalização, que acarretou e ainda acarreta enormes problemas para a população, que costuma culpar apenas o Poder Público, as administrações que passaram pela Prefeitura e a falta de obras para a melhoria da mobilidade e da qualidade de vida, perdida principalmente por causa do adensamento populacional[3].

 Parte das Plantas Topográfica e Geral elaboradas em 1895 onde se destacam os cursos d'água ignorados pela CCNC e o ribeirão Arrudas, que seria canalizado na região central.
Fonte: APCBH Acervo CCNC

 Planta de 1923 onde figuram os córregos que atravessam a zona urbana planejada de BH retificados de acordo com a Planta de 1895.
Fonte: PANORAMA de Belo Horizonte; Atlas Histórico. Belo Horizonte: FJP. 1997.

Região central de BH onde se destacam em marrom os cursos d'água canalizados.
Fonte: PLAMBEL, 1975

Pois bem, a cobertura dos córregos nas décadas de 60 e 70 trouxe uma melhoria momentânea no fluxo viário, principal motivo apontado pelo Poder Público para a execução de tais obras, até o presente momento (2013) e amenizando o mau cheiro nas regiões atravessadas por eles. Com o passar dos anos e a acentuada verticalização e adensamento da região sul, impulsionada pela abertura da Avenida Prudente de Morais e pela demolição das primeiras casas residenciais construídas nos bairros Santo Antônio, São Pedro, Sion, Anchieta etc. os congestionamentos se estenderam para as principais vias da região, muitas delas construídas sobre os córregos, nas drenagens e nos fundos de vale.
De fato a partir da década de 1990 os velhos problemas das enchentes e do mau cheiro voltaram a rondar os locais atravessados pelos córregos do Leitão e do Acaba Mundo[4]. O adensamento e urbanização das vertentes dos córregos assim como a impermeabilização do solo e o esgoto despejado em suas águas sobrecarregaram os cursos d’água, que passaram a sair da sua calha periodicamente nos períodos chuvosos. As canalizações naturalmente não comportariam tal volume d’água, pois o crescimento urbano foi bem maior do que a previsão feita pelos engenheiros quando da confecção do projeto, da mesma forma que não se imaginava que a verticalização atingiria tais proporções na região sul e nas cabeceiras dos córregos.
Exceção feita ao ribeirão Arrudas, a principal drenagem de Belo Horizonte, um verdadeiro emissário a céu aberto que sofre com a poluição e com o despejo dos esgotos desde o inicio do Século XX e tornou-se um curso d’água “morto” na década de 1970 e o ribeirão do Onça, a principal drenagem da região da Pampulha e Venda Nova, os córregos poluídos poderiam ter sido salvos? 
Na minha analise eu acredito que sim, pois passaram pela Prefeitura ao longo das décadas diversos profissionais, em particular o Engenheiro Sanitarista Lincoln Continentino (que sugeriu em 1941 um conjunto de parques ao longo do Arrudas, no prolongamento da Avenida dos Andradas vislumbrado por ele) que tinham plenas condições que elaborar e executar um plano de saneamento das micro bacias dos córregos e mesmo na bacia do Arrudas que impedisse que os esgotos, o lixo e outros poluentes atingissem os cursos d’água, além de cuidar das suas cabeceiras visando amenizar o assoreamento deles. Um plano dessa magnitude executado no momento que se iniciava a urbanização da região certamente teria salvado os cursos d’água hoje cobertos e transformados em emissários de esgotos, além do próprio Arrudas. Mas também tinha o grave problema financeiro que assolou a Prefeitura desde a inauguração da capital, grande parte das obras executadas nas primeiras décadas foram financiadas na sua totalidade pelo Governo Estadual, em particular as executadas na década de 1920, década da retificação e canalização dos córregos aqui abordados, a despoluição na verdade nunca esteve em pauta nas politicas urbanas de grande parte do Século XX. A partir da década de 1940 teve o problema do acentuado crescimento da capital, que as administrações municipais não acompanharam sob a alegação de falta de recursos para a instalação dos equipamentos urbanos necessários para dar suporte ao crescimento urbano. 
 Existia uma consciência em relação à poluição das águas dos cursos d’água, é bom lembrar que Belo Horizonte foi concebida para ser uma cidade que primava pela salubridade e pela higiene[5], conceitos que foram sendo deixados de lado ao longo dos anos. Apesar de tal consciência os cursos d’água iam se tornando mais poluídos ao longo dos anos, de fato conveniente para o Poder Público que não precisaria se preocupar no momento com a construção de novos emissários de esgotos, os córregos fariam esse papel. Entre 1897 e 1972 60% da rede de esgoto de Belo Horizonte havia sido construída pela Comissão Construtora da Nova Capital. Os Sanitaristas que realmente se preocupavam com um real saneamento ficaram de mãos atadas pelo Poder Público, os cursos d’água pagaram um preço alto e a população belorizontina, que sofria com a falta d’água diária foi aos poucos sendo privados dos cursos d’água utilizados por muitos para a captação de água local, se banhar ou mesmo lavar roupas, lembrando que as colônias agrícolas que existiram em BH entre 1897 e 1913 foram assentadas nas vertentes dos córregos que banham a zona suburbana da capital, origem das suas nascentes.


O ribeirão Arrudas em 1967, logo abaixo da Avenida do Contorno e em 2008, canalizado e retificado no mesmo trecho. A canalização empregada na década de 80 proporcionou a mudança das linhas férreas que seguem ao longo do ribeirão, porém erradicou as Favelas da Baiana, União e Urubus da paisagem, além de extinguir parte da Favela do Perrela na margem esquerda.
Fonte: APCBH e Google Earth

Ribeirão Arrudas na região leste de BH no final da década de 70. Abaixo a Favela Gogó da Ema, desaparecida quando da retificação e canalização e Vila São Rafael.
Fonte: APCBH Coleção José Góes

 Final da antiga canalização do Arrudas em 1983 na Ponte do Perrela. Ao lado da ponte é possível ver os emissários de esgotos construídos nas décadas de 1910 e 1920 que despejavam os esgotos da capital in natura no ribeirão. A imagem data do inicio de 1983 após a grande enchente de 02 de Janeiro de 1983 que arrasou com a antiga ponte da Avenida do Contorno.
Fonte: Acervo PLAMBEL

 Mapa do Plambel que mostra a canalização e retificação a serem empregadas no Arrudas, realizada  no decorrer da década de 80.
Fonte: Acervo PLAMBEL

Obras de retificação e canalização do Arrudas, no trecho mostrado na imagem anterior. À direita o ribeirão desviado para um canal provisório, aterrado para o prolongamento da Avenida dos Andradas em 1986. A esquerda o bairro de Santa Tereza.
Fonte: Acervo SUDECAP

Com tudo que se expôs acima vem a pergunta: seria possível promover hoje uma renaturalização dos córregos atualmente cobertos na zona urbana? Nas atuais circunstâncias não, pelo menos enquanto o automóvel continuar sendo o protagonista das politicas urbanas na capital. Inicialmente seria necessária a revitalização dos cursos d’água, obra extremamente dispendiosa devido a necessidade de se construir e ampliar toda a rede de esgoto das micro bacias, além da construção de novos emissários para a captação dos esgotos sanitários, evitando o despejo nos córregos. Seria necessária uma medição da vazão do curso d’água, pois a bacia se encontra totalmente impermeabilizada e certamente muitas das nascentes podem estar aterradas ou desaparecidas, lembrando que os cursos d’água que foram retificados e canalizados apresentam um processo de renovação natural prejudicado.
Renaturalizar os córregos significa abrir a sua calha novamente, e em muitos casos os voltando para o seu curso original. No caso do Acaba Mundo e Leitão, que abordo nesse artigo seria impossível reconduzi-los para o seu leito natural, aterrado e urbanizado há décadas. Para eles voltarem a correr a céu aberto seria inevitável a supressão de uma a duas pistas das vias existentes ao longo do curso. Isso acarretaria toda uma mudança na circulação viária, com grande prejuízo para a mobilidade urbana, que se encontra atualmente em um estado critico. Certamente a grande maioria da população seria contra essa medida, da mesma forma que foram a favor da cobertura nas décadas de 60 e 70. Sem duvida o nível de conscientização ambiental vem crescendo a cada dia, e uma renaturalização seria vista com bons olhos, mas seria possível somente se medidas similares como as expostas acima fossem tomadas, além de outras tantas necessárias para uma renaturalização que se harmonize com o meio urbano.
Atualmente grande parte da população belorizontina desconhece a existência desses cursos d’água correndo sob seus pés e residências, visto que eles foram cobertos há pelo menos cinquenta anos tornando-se quase impossível ter uma noção da geografia que os conformam. Infelizmente o ribeirão Arrudas terá o mesmo destino dos córregos, visto que a cobertura da sua calha é uma das prioridades das administrações municipais e estaduais nos últimos anos para a melhoria da mobilidade, contrariando toda a política de renaturalização vigente no planeta e o DRENURBS. Para que houvesse um início de mudança no que diz respeito ao tratamento dos córregos cobertos seria bem vindo um trabalho de conscientização da população, apresentando a ela os cursos d’água que correm em seus bairros, excursões aos fundos de vale, mesmo urbanizados e as suas nascentes etc. além de um trabalho de paisagismo caso os cursos d’água voltem a correr a céu aberto. Se a população não tomar conhecimento da existência deles, como então exigir uma renaturalização e conservação, ainda mais que a retificação e a canalização são “vendidas” como a melhor solução para o problema desde a construção da capital. Aliás, os cursos d’água que cortam centros urbanos no Brasil são tratados como um grave problema e cabe ao ser humano corrigir tal erro da natureza, segundo o Poder Público.

 Córrego do Acaba Mundo sob a Rua Professor Morais.
Fonte: Foto do Autor

 Inicio da canalização coberta do córrego do Acaba Mundo na Praça JK, antiga barragem de contenção das cheias do córrego.
Fonte: Foto do Autor

 Córrego do Gentio na Rua Outono em dois momentos: em 1966 a céu aberto e em 2013 sob a via.
Fonte: APCBH/ASCOM e foto do Autor 

 Cobertura do ribeirão Arrudas na Avenida Tereza Cristina em 2012.
Fonte: Foto do Autor

 A metamorfose da paisagem urbana: o ribeirão Arrudas a céu aberto em 2011 e coberto (Boulevard Arrudas) em 2013.
Fonte: Foto do Autor

Córrego da Ponte Queimada, receptor de grande parte dos esgotos do bairro Buritis, Palmeiras entre outros, além dos despejos irregulares de resíduos, como se vê na imagem.
Fonte: Foto do Autor

 Confluência dos córregos da Ponte Queimada e Cercadinho, as principais drenagens do bairro Buritis,  Estrela Dalva entre outros bairros, completamente poluídos.
Fonte: Foto do Autor

Cachoeira do ribeirão do Onça no bairro Novo Aarão Reis. O ribeirão do Onça é formado pelos córregos da Ressaca, Sarandi e o ribeirão Pampulha, entre outros cursos d'água, muitos deles originários de Contagem.
Fonte: Foto do Autor

As canalizações empregadas em Belo Horizonte são um reflexo do seu tempo, onde obras de tal magnitude representavam o progresso e o avanço da sociedade mineira. Infelizmente tais processos e pensamentos ainda persistem na capital mineira, em desacordo com as politicas urbanas e ambientais adotadas em outros locais no planeta que passaram por processos similares e que adotaram a política de reabilitação dos rios devido ao alto grau de poluição das águas, que acarretavam problemas mais dispendiosos do que se continuassem canalizados. Pode demorar 30, 40 ou 50 anos, mas um dia a sociedade e a natureza exigirá a reinserção dos córregos limpos e tratados na paisagem urbana. Abaixo um trecho extraído do artigo “Os córregos e a metrópole:a inserção no espaço urbano dos cursos d’água que atravessam a zona urbana de Belo Horizonte” apresentado em 2011 no XII Simpósio Nacional de Geografia Urbana:

“A sociedade interfere e modifica o meio urbano de acordo com suas necessidades. Inseridos na paisagem urbana devido às necessidades socioeconômicas do período eles não resistiram às profundas mudanças no espaço urbano que veio a deixar profundas marcas na paisagem belorizontina. Apesar das políticas urbanas atuais valorizarem a inserção dos córregos não canalizados na paisagem urbana, como um agente concreto que a compõe, os córregos cobertos, ao que tudo indica ainda passarão décadas sob as vias e quarteirões até que se adote uma política de reinserção dos cursos d’água no espaço urbano.”

        E nesse exato momento está sendo finalizada a cobertura do ribeirão Arrudas visando o alargamento da Avenida Tereza Cristina para a melhoria da mobilidade urbana, uma excelente solução adotada para esconder o que foi estragado por eles mesmos, ao permitir o crescimento desordenado da capital sem estabelecer critérios para tal, como o crescimento centro-periferia sugerido por Aarão Reis e resgatado em parte por Lincoln Continentino e a instalação das indústrias na bacia do Arrudas sem estabelecer critérios para o controle da poluição do ar, dos desmatamentos e do despejo de resíduos nas águas dos cursos d’água. O próximo trecho a ser coberto, de acordo com o que foi anunciado é o trecho compreendido entre a Alameda Ezequiel Dias e a Avenida no Contorno, na Ponte do Perrela. O ribeirão daqui a alguns anos só correrá a céu aberto nos trechos periféricos, na região central, por motivos óbvios ele estará totalmente erradicado da paisagem urbana. Sem dúvida um Boulevard no melhor estilo Hausmann, asfaltado e sem pedestres ao modo Le Corbusier.


 Nascente do córrego do Leitão no bairro Santa Lúcia.
Fonte: Foto do Autor

Córrego da Serra no Parque das Mangabeiras.
Fonte: Foto do Autor 

 Córrego do Acaba Mundo na vila de mesmo nome em 2011.

Cachoeira natural do córrego do Acaba Mundo que existiu no Parque Municipal. Imagem de 1904 que nos leva a pensar como seria bom se existisse uma convivência harmoniosa do ser humano com o meio em que habita.
Fonte: APCBH




[1] É bom lembrar que a CCNC dividiu a nova capital em três setores: A zona urbana planejada dentro dos limites da Avenida do Contorno, a zona suburbana e a zona dos sítios.

[2] Citei apenas três das dezenas de cursos d’água existentes em Belo Horizonte e que se encontram na sua maioria canalizados e cobertos. Os cursos d'água que ainda correm a céu aberto optei por citar os da bacia do córrego do Cercadinho. Existem ainda inúmeros cursos d'água a céu aberto, como os afluentes do Ribeirão do Onça e os da região do Izidoro, pertencentes a Bacia do Onça. 

[3] A atual gestão pretende promover, erroneamente a meu ver, um crescimento – leia-se verticalização, em direção à periferia de BH. Isso nos remete ao distante ano de 1895 quando Aarão Reis, ao apresentar a Planta da nova capital para o então Presidente do Estado Afonso Pena afirmou que pretendia ordenar o crescimento da nova capital a partir do centro para a periferia. Na prática não foi o que aconteceu, pois a zona planejada só foi totalmente urbanizada na década de 60, enquanto a zona suburbana, apesar da falta dos equipamentos urbanos básicos cresceu vertiginosamente desde os primeiros anos da nova capital, devido aos preços módicos dos lotes e da “discreta” proibição imposta pelas administrações em relação a ocupação da zona planejada.

[4] Como afirmei anteriormente, trabalharei apenas com os problemas ocorridos com os dois cursos d’água. É sabido que em inúmeros locais os cursos d’água tomam o que é seu por direito nos períodos chuvosos (Av. Francisco Sá, Silva Lobo, Tereza Cristina etc.), mas por ora abordarei apenas os dois em questão.

[5] Os primeiros emissários construídos na infante capital levavam os esgotos captados até a região do Matadouro, nas proximidades do Boulevard Shopping no bairro Santa Efigênia . Lá deveria ter sido construída uma Estação destinada ao tratamento dos esgotos captados. Os emissários continuaram despejando o esgoto no Ribeirão Arrudas, fora dos limites da Avenida do Contorno ao longo do século XX e a ETE nunca chegou a ser construída.
Rua São Paulo no final da década de 20 com o canal do córrego do Leitão já concluído.
Fonte: APM

     A Rua São Paulo atualmente é uma das principais vias de ligação entre a região sul de Belo Horizonte com a região central. Aberta somente na década de 20, na primeira expansão ordenada da zona urbana promovida pelo Poder Público a rua teria um papel fundamental na urbs belorizontina: ao longo dos seis quarteirões compreendidos entre o bairro de Lourdes e a região central seria construído o canal destinado as águas do córrego do Leitão, que corria em seu leito natural e retificado para a construção do bairro de Lourdes ao longo da década de 20. Junto com a Rua São Paulo abriram-se também as ruas Barbara Heliodora e Padre Belchior para a retificação do córrego, ruas que não existiam na planta original da capital.

 Canalização do córrego do Leitão em 1928 na Rua São Paulo e Avenida Alvares Cabral.
Fonte: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC 

 Inicio da canalização a céu aberto do córrego do Leitão na Rua São Paulo.
Fonte: APM

 O córrego no cruzamento das Ruas São Paulo e Guajajaras em 1928.
Fonte: APM

 Córrego do Leitão em 1928 na Rua São Paulo.
Fonte: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC 

 O córrego na Rua São Paulo no cruzamento com Rua Gonçalves Dias.
Fonte: APM

O córrego no mesmo local após o término da canalização.
Fonte: APM

Parte da Planta de 1923 onde figura o córrego canalizado e retificado para a Rua São Paulo. As obras para a retificação nesse trecho começaram quatro anos mais tarde.
Fonte: APCBH

    O adensamento da região nas décadas seguintes, principalmente do entorno da Rua São Paulo, que assistia a expansão da verticalização da área central para os bairros adjacentes converteu o córrego de águas mansas e cristalinas em um emissário de esgoto a céu aberto, visto que o emissário que existe ao longo do córrego não dava mais conta de transportar tamanha quantidade de efluentes. Na verdade isso acontecia simultaneamente em outras regiões da capital (e ainda acontece) nos inúmeros cursos d’água que atravessam a capital mineira. Isso selou o destino do córrego não só na Rua São Paulo, mas também em toda a extensão do seu curso.


Imagem aérea de 1953 onde está sinalizado o trecho do córrego do Leitão na Rua São Paulo, entre as Ruas Padre Belchior e Barbara Heliodora.
Fonte: PANORAMA de Belo Horizonte; Atlas Histórico. Belo Horizonte, FJP


    O córrego do apresentava um alto grau de poluição de suas águas. A porção da capital atravessada por ele apresentava na década de 60 um alto grau de urbanização ao mesmo tempo em que se tinha o inicio da ocupação sistemática das suas cabeceiras. O mau cheiro de suas águas e as constantes enchentes que levavam lama e lixo para as ruas eram motivos de reclamações constates da população, que passou a exigir uma solução rápida para o problema. A cobertura do canal era vista como a solução dos problemas gerados pelo córrego além de ser considerada como uma obra de embelezamento da capital¹, abalada com a perda do titulo de “Cidade Jardim” desde o corte dos Ficus da Avenida Afonso Pena em 1963, das árvores das Avenidas Augusto de Lima e Bias Fortes e principalmente para a melhoria da mobilidade urbana². No final da década de 60 se tem o inicio das obras de  cobertura do córrego do Leitão desde a Rua São Paulo até a sua foz no ribeirão Arrudas. Paralelamente ao fechamento teve inicio em Julho de 1970 a canalização e cobertura do Leitão na zona suburbana para a abertura da Avenida Prudente de Morais. Essa obra visava melhorar o fluxo viário na região que expandia a passos largos além de erradicar da paisagem o curso d’água que havia se transformado em um esgoto a céu aberto, pois o aumento da ocupação das vertentes do córrego nas proximidades de suas cabeceiras desencadeou o lento processo de assoreamento que, nos períodos de chuva enlameava diversas ruas ao longo do seu curso, principalmente a Rua São Paulo. Após a sua cobertura em 1970 a funcionalidade da região mudou lentamente, sendo que a grande maioria das casas residenciais que existiam ao longo da rua foram sendo demolidas e substituídas por edifícios e casas comerciais. Atualmente a Rua São Paulo se tornou uma das principais vias de acesso para a região central, o que não seria possível se o córrego ainda corresse a céu aberto.

    O córrego do Leitão, assim como o Acaba Mundo, Serra etc. foram ignorados pela Comissão Construtora e inseridos na paisagem urbana na década de 20 foram “escondidos”, à partir da década de 60 debaixo das vias com a finalidade de melhoria do fluxo viário e do embelezamento urbano. Da década de 70 até os dias atuais o termo “hidrologia urbana” tem sido usado para designar a reinserção e requalificação dos cursos d’água no meio urbano. As formas da paisagem urbana são diversas e, segundo (SANTOS, 1998) “é a materialização de um instante da sociedade”. Na paisagem urbana de Belo Horizonte grande parte dos cursos d’água foram erradicados da paisagem, sendo possível identifica-los atualmente apenas com o auxilio de mapas.

    A sociedade interfere e modifica o meio urbano de acordo com suas necessidades. Inseridos na paisagem urbana devido às necessidades socioeconômicas do período os cursos d'água não resistiram às grandes mudanças no espaço urbano que veio a deixar profundas marcas na paisagem belorizontina. Apesar das políticas urbanas atuais valorizarem a inserção dos córregos não canalizados na paisagem urbana, como um agente concreto que a compõe, em Belo Horizonte os córregos cobertos, ao que tudo indica ainda passarão décadas sob as vias e quarteirões até que se adote uma política de reinserção dos cursos d’água no espaço urbano.  


Casa residencial datada da primeira ocupação urbana ainda existente na Rua São Paulo, às margens do córrego do Leitão.
Fonte: Foto do Autor

A metamorfose do espaço: A calha do Córrego do Leitão em três momentos no mesmo local: À esquerda em 1928 quando foi retificado e canalizado no trecho compreendido na Rua São Paulo, nas proximidades do cruzamento com a Avenida Augusto de Lima. No centro em 1971 quando da cobertura de seu canal para o alargamento da mesma Rua. À direita o mesmo trecho em 2010. 
Fonte: APM, Autoria Desconhecida e foto do Autor respectivamente.




 ¹ O Boulevard Arrudas é um bom exemplo de como as coisas se perpetuam no Poder Público. As mesmas justificativas usadas há 50 anos ainda servem para "explicar" e exaltar as grandes melhorias que tal obra trará para a sociedade em geral. 

² Interessante é que as politicas urbanas voltadas para a mobilidade na capital mineira são praticamente as mesmas há cinquenta anos, sempre favorecendo a determinadas classes sociais que se perpetuam em BH como um vírus, atrasando o desenvolvimento urbano, viário e social e seguindo desconstruindo e derrubando o que se opõe aos seus interesses. Já passou da hora de surgir uma gestão séria, que admita que grande parte das politicas urbanas adotadas na capital desde a década de 50 são péssimas e que favorecem apenas a um grupo especifico da capital mineira, no qual muitos dos administradores que passaram pela municipalidade pertencem.

SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.

Rios Invisíveis da Metrópole Mineira

gif maker Córrego do Acaba Mundo 1928/APM - By Belisa Murta/Micrópolis